Eu era relativamente jovem quando a dupla Claudinho & Buchecha estourou no cenário musical, e muita coisa da dupla por trás de sucessos como “Nosso Sonho”, “Quero Te Encontrar” e “Só Love” que eu sei hoje são objeto de revisionismos de impressões erradas que tinha na época. Eu sempre achei, por exemplo, que Claudinho era o mais tímido e Buchecha, o mais despojado.

O filme Nosso Sonho – biópico baseado na história da dupla – tem a serventia de desmistificar essa e outras percepções que os fãs mais antigos dos dois cantores, nascidos Cláudio Rodrigues de Mattos e Claucirlei Jovêncio de Souza, pudessem ter na época de início da adolescência. Mas a forma com a qual ele o faz é tão…leve e simplista que expande isso de forma excelente, mostrando que, apesar dos problemas e do início difícil de cada um, um longa-metragem biográfico não precisa apelar para o dramalhão exagerado para ter sucesso.

Vividos, respectivamente, por Lucas Penteado e Juan Paiva (além de Vinicius “Boca de 09” e Gustavo Coelho vivendo ambos quando crianças), Claudinho & Buchecha sempre tiveram uma percepção irreverente que denota a química entre os dois. Amigos de long(uíssim)a data, fica bem óbvio logo no início do filme que ambos eram almas gêmeas.

Essa ideia é permeada por toda a produção, assinada pela direção de Eduardo Albergaria e roteiro dele junto de Maurício Lissovsky. Desde o início, até a separação dos dois (quando Claudinho se mudou para o Morro do Salgueiro, em São Gonçalo), e seu eventual reencontro (quando Buchecha teve que ir para lá por razões familiares), todo o longa passa a ideia de que, não fossem cantores, os dois ainda acabariam juntos de alguma forma.

Nisso, entra uma atuação ímpar de Penteado e Paiva. Toda a produção teve a revisão e endosso do próprio Buchecha, que supervisionou o roteiro para assegurar 1) a veracidade dos fatos retratados 2) que as partes dramáticas ressaltassem justamente que as homenagens deveriam ser levadas ao Claudinho – que morreu em um acidente automobilístico na Rodovia Presidente Dutra, em 13 de julho de 2002.

Um adendo: a data de morte do cantor também me soa estranha até hoje – eu sempre fui fã de ambos e, na data de partida de Claudinho, eu completava 16 anos. Foi um aniversário esquisito, meio sombrio, para dizer o mínimo. Apesar de não ter feito festa – nunca fui muito disso – me lembro de não querer ouvir os CDs dos caras, mas “Rascunho”, do terceiro disco, repetidamente tocava na minha cabeça, por algum motivo.

Montagem coloca lado a lado os cantores Claudinho e Buchecha, junto dos atores Lucas Penteado e Juan Paiva, seus intérpretes no filme "Nosso Sonho"

Claudinho e Buchecha (esq.) foram interpretados por Lucas Penteado e Juan Paiva (dir.) no filme “Nosso Sonho” (Imagem: Riofilmes, via Mundo Preto/Reprodução)

Uma das coisas mais interessantes em Nosso Sonho é o fato de que o time de produção não quis apostar somente em “tapes” velhos da dupla, e aproveitaram gravações de atividades antigas para recriarem todas em cenários onde os dois atores pudessem cantar e participar – lá pela metade do filme, uma entrevista icônica da dupla com o também falecido jornalista e apresentador Jô Soares (onde Buchecha revela “ter pegado mal” Claudinho ter contado de seu apelido familiar), há uma transição muito bacana entre o vídeo real e uma tomada em diagonal mostrando os dois atores: teve até uma “estática” breve simbolizando os televisores CRT (“de tubo”) da época, para “dar idade” à peça.

Detalhes assim não estão livres de seus anacronismos, claro: por todo o tempo – em especial, nos bailes de favela – você vê marcas de roupas que não estavam no Brasil (ou eram incrivelmente inacessíveis) durante a década de 1990. Mas nada que tire a imersão de quem não prestaria atenção a esse tipo de detalhe.

O tom dramático existe, mas ele é pesado nas horas certas, e esquecido onde ele não é necessário: achei uma escolha particularmente inteligente, haja vista que, tal qual a dupla que lembramos na TV, Claudinho e Buchecha no filme são, antes de tudo, moleques alegres. A ideia é justamente valorizar o “modo upbeat” de viver a vida que Claudinho trazia, tentando aliviar discussões que, fosse outra pessoa, tinham tudo para serem bem pesadas.

Imagem mostra cena do filme Nosso Sonho, da vida dos cantores Claudinho e Buchecha

Imagem: Riofilmes, via Mundo Preto/Reprodução

Em compensação, quando o drama entra, ele entra pra valer: Nosso Sonho não se acanha de tratar da vida conturbada de Buchecha – os problemas do pai com o alcoolismo, as dificuldades do lar que decorrem disso, e até banalidades menores, como o interesse amoroso dizer, na cara dele e com ele prestes a entrar em um concurso, que “não gosta muito de funk” (Vanessa viria a ser a esposa dele pouco tempo depois, calma!), é palpável o empenho de Paiva em mostrar aquela “broxada” de quem te conta algo com muita empolgação apenas para ser derrubado por uma resposta meio fora de tom.

Mas ao mesmo tempo em que isso torna certos momentos do filme mais sombrios, eles também mostram como a dupla consegue voltar disso – ora com um puxando ao outro, ora com Claudinho agindo como o conselheiro do amigo. A mensagem fica clara antes mesmo dela ser dita com palavras: todo mundo merece uma segunda chance.

Musicalmente, ‘Nosso Sonho’ é um deleite para o funk antes dele ser pop

Um ponto interessante de Nosso Sonho é mostrar como era o Rio de Janeiro mais alegre sem apelar para os lados mais problemáticos da época. Quer ter uma ideia? Fora o “finzinho do finzinho”, o filme se ambienta na década de 1990, até os sucessos dos primeiros discos, a chegada de “Só Love” e as viagens internacionais da dupla. Sabe o que se passa mais ou menos na mesma época? O primeiro Tropa de Elite.

O interessante é que uma pequena parcela da trilha sonora compartilha dessa situação temporal: embora não tenha nenhuma música de Nosso Sonho em Tropa de Elite e vice-versa, quem conhece um pouquinho do funk de outrora sabe que canções como Eu Só Quero É Ser Feliz (Cidinho e Doca, devidamente nomeados e citados no filme dos cantores) e Morro do Dendê na voz de Menor do Chapa se cruzaram (pudera: apesar da versão do Chapa ser mais famosa hoje, a introdução de sua música é um original do Rap das Armas…de Cidinho e Doca).

Obviamente, um filme sobre uma dupla musical não apostaria tanto em canções de outros artistas que não os seus, então individualmente, não há muita exibição de canções que não sejam assinadas por Claudinho & Buchecha. Entretanto, os cenários nas partes mais musicais ajudam a estabelecer um contexto bastante verossímil à época – entradas de bailes de favela a R$ 1 para homens, de graça para mulheres; festas em galpões abertos porém em espaços controlados, barracas de pequenos comerciantes nos arredores…até quem era de fora do Rio de Janeiro, como é o meu caso, reconhece o período.

Essa variação poética ajuda a mostrar o Rio de Janeiro que definitivamente não é “praia e tiroteio”, e tem muito mais do estado mais praiano do sudeste brasileiro do que sua fama indica – é só ter vontade de mostrar. Inclusive, a única cena que toca nessas linhas mais problemáticas da sociedade só o faz com sons (nenhuma arma ou bandido à vista) e apenas para estabelecer o contexto de reencontro dos dois amigos. Rapidamente, o filme retoma a guinada para o seu tom mais divertido.

Imagem mostra cena do filme Nosso Sonho, da vida dos cantores Claudinho e Buchecha

Imagem: Riofilmes, via Mundo Preto/Reprodução

Não tem erro: vá assistir a ‘Nosso Sonho’

Ao sair da sala de cinema, ficou bem óbvio para mim que Nosso Sonho não é apenas a história de Claudinho & Buchecha, mas sim uma ode do segundo para homenagear o primeiro: é fácil perceber como o tom narrativo do filme atribui a Claudinho toda a ideia de se tornar um MC, de montar dupla com um inicialmente relutante Buchecha, de reduzir seus sonhos de fama a um carro (o “Gol bolinha” cor prata que, anos mais tarde, seria a cena de seu acidente fatal)…tudo com Claudinho era “fácil de lidar”, mesmo quando não o era.

Me lembro de algumas entrevistas onde Buchecha afirmava que seu amigo tinha uma facilidade para sorrir. Lucas Penteado traduziu isso muito bem: a famosa “malemolência carioca” (que é diferente da malandragem pejorativa) é perene em sua atuação, que dá o tom de guiar várias das cenas, e com Juan Paiva entrando de forma inteligente nas deixas do companheiro de atuação, a dinâmica entre os dois se faz notar tanto quanto…bem, tanto quanto Claudinho e Buchecha.

Isso tudo faz de Nosso Sonho uma recomendação fácil para qualquer pessoa – seja você um cinéfilo entusiasta, um crítico de cinema ou consumidor casual, esse filme vai entregar algo específico para o seu gosto e vai manter essa entrega por toda a produção.

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