O reconhecimento facial (RF) é uma tecnologia em julgamento: enquanto casos de usos crescem no Brasil e no mundo, amparados pelo argumento de ser uma ferramenta que abre possibilidades, organizações da sociedade civil denunciam sua cumplicidade em problemas sociais — atuais e futuros.

Entre as principais críticas está a falta de capacidade da tecnologia em reconhecer rostos diversos, o que abre caminho para situações como o racismo em consequência de uma vigilância indiscriminada. Mas esta é uma das muitas questões que ainda precisam ser endereçadas.

Rafael Zanatta, diretor de pesquisa do Data Privacy, explica ao blog KaBuM! que o reconhecimento facial no Brasil é mais comumente utilizado com duas finalidades específicas: segurança e autenticação.

A primeira das modalidades, a de RF para segurança — especificamente em segurança pública —, é a que tem sido mais criticada e combatida por organizações da sociedade civil. E não sem motivo: a possibilidade da vigilância em massa já gerou erros graves, como o caso de uma mulher que foi detida em Copacabana porque a tecnologia a identificou como sendo uma criminosa que estava foragida — isso, apenas para citar um exemplo.

O controverso uso de reconhecimento facial na segurança

Os erros mais frequentemente noticiados, vale ressaltar, são relacionados a pessoas negras. Dois relatórios divulgados no ano passado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) e pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) apontam falhas no reconhecimento fotográfico feito em delegacias do país e corroboram com essa análise.

Para se ter uma ideia, pelo menos 90 prisões feitas entre 2012 e 2020 — e as quais usaram a tecnologia como base para deter os cidadãos identificados — foram erroneamente realizadas. Dessas, 79 possuem informações conclusivas sobre a raça dos acusados: 81% eram pessoas negras. O Rio de Janeiro responde pela maioria das identificações falhas, sendo 73 do total.

“O RF pode até ter exatidão, mas apenas exacerba problemas que já temos, pois vivemos em um mundo onde há discriminação estrutural, e a ferramenta pode ser usada contra minorias”, afirma Veronica Arroyo, porta-voz da AcessNow, ao blog KaBuM!.

Outro relatório, o “Vigilância automatizada: uso de reconhecimento facial pela Administração Pública no Brasil”, elaborado pelo Laboratório de Políticas Públicas e Internet — LAPIN em julho de 2021, faz um raio-x do uso da tecnologia no setor público brasileiro.

No levantamento, foram investigados oito casos em diferentes organizações governamentais e resumidos em uma tabela:

Casos Regulação específica Boas práticas Erro de acurácia Direitos do titular Formas de negociação
SSP/BA Não Questionável Sim Não Licitação
SSP/CE Não Não Sem informação Não Licitação
PCESP Não Sem informação Sem informação Não Não
PMERJ Não Não Sim Não Teste grátis
Mogi das Cruzes Não Não Sem informação Não Doação
SEMOB Sim Sim Sem informação Sim Contratação direta pelas concessionárias
Pilar Não Não Sem informação Questionável Licitação
SERPRO Questionável Questionável Sem informação Sim Produção própria
Fonte: LAPIN

Diversas questões foram levantadas na pesquisa do LAPIN, aspectos que necessitam ser verificados para o uso de RF nas instituições, sendo elas: a existência de regulação específica, boas práticas, erro de acurácia (exatidão na identificação do RF), direitos do titular e formas de negociação da iniciativa de RF.

A falta de alguns destes quesitos (ou a maioria deles, em muitos casos) resulta em problemáticas graves, especialmente  racismo, como já citado, mas também transfobia, violação de direitos de crianças e adolescentes, violação de direitos fundamentais e vigilância em massa.

Reconhecimento facial e autenticação

O segundo caso mais proeminente de uso do reconhecimento facial no Brasil é em processos de autenticação — um desdobramento do uso de RF em segurança e que está atualmente presente em organizações públicas e privadas.

Essa finalidade, inclusive, é o que mais atrai empresas, já que ela permite a implementação de soluções de monitoramento e acesso a condomínios, eventos, de multidões, e outras tantas variedades de ofertas.

Veronica, da Access Now, indica que, na América Latina, a maioria dos fornecedores de hardware é estrangeira e os fabricantes mais conhecidos são a Dahua e a Hikvision — ambas chinesas.

Em tempos de pandemia, por exemplo, as soluções baseadas em RF têm sido usadas como facilitadoras no retorno ao trabalho presencial, com a possibilidade de trazer mais segurança no quesito saúde, por entregar uma oferta equipada com controle de acesso touchless (sem toque, em tradução) e com triagem de temperatura.

O sistema fornecido pela Dahua, por exemplo, faz o reconhecimento facial mesmo quando o usuário está utilizando máscara, além de usar câmeras térmicas para a medição de temperatura. A Hikvision também possui oferta similar.

Reconhecimento facial Dahua

A Dahua possui sistemas que fazem o reconhecimento facial mesmo com máscaras e câmeras térmicas – Imagem: reprodução

Um dos exemplos mais recentes de processos de autenticação e que mais têm popularizado o RF no Brasil, no entanto, é o implementado pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO). Chamado de “Embarque + Seguro”, o projeto que possibilita o embarque mais rápido em aeroportos.

Desenvolvida pelo SERPRO em uma iniciativa do Ministério da Infraestrutura (MInfra) em parceria com a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, a iniciativa já foi testada com passageiros dos aeroportos:

  • Aeroporto Internacional de Florianópolis – Hercílio Luz (SC),
  • Aeroporto Internacional de Salvador – Deputado Luís Eduardo Magalhães (BA),
  • Aeroporto Santos Dumont (RJ),
  • Aeroporto Internacional de Confins – Tancredo Neves (MG),
  • Aeroporto de Congonhas (SP),
  • Aeroporto Estadual de Ribeirão Preto – Doutor Leite Lopes (SP),
  • Aeroporto Internacional de Brasília – Presidente Juscelino Kubitschek (DF).

Em janeiro, o projeto já havia sido utilizado em mais de 315 voos de teste, com cadastramento de 6,3 mil passageiros em sete aeroportos diferentes, segundo informou o SERPRO ao blog KaBuM!. E os planos vão além: recentemente, o SERPRO e a Infraero selaram um acordo para entrega da tecnologia em 100% dos aeroportos brasileiros.

Reconhecimento Facial Serpro

Projeto Embarque Mais Seguro de reconhecimento facial em aeroportos – (Imagem: Serpro)

De acordo com porta-voz do SERPRO, o funcionamento do projeto é simples: “No momento do check-in no aeroporto, o passageiro é convidado a experimentar a tecnologia de reconhecimento biométrico facial para embarcar na aeronave. Após concordar, o viajante recebe no celular informado [no cadastro], uma mensagem com solicitação de autorização para obtenção de seus dados, incluindo CPF e foto, que é tirada na hora e comparada com as bases governamentais”.

A partir da validação dos dados, o passageiro fica liberado para ingressar na aeronave, passando pelo ponto de controle biométrico que faz a identificação por meio de câmeras, sem a necessidade de o usuário apresentar documentos ou mesmo o cartão de embarque.

O SERPRO afirma que o Embarque + Seguro traz mais segurança aos passageiros e reduz o tempo de espera em filas, já que o processo de check-in e embarque aéreo é realizado em poucos segundos.

Armazenamento dos dados, LGPD e privacidade

No caso dos processos de autenticação, a maior preocupação é com o armazenamento dos dados. No caso do SERPRO, a organização afirma que a solução atende à LGPD e tem por premissa a segurança no tratamento dos dados pessoais contra uso indevido ou não autorizado.

Os dados, que precisam ser utilizados para o embarque com reconhecimento facial, não são compartilhados com terceiros, e o passageiro tem que assinar um termo de consentimento para o uso.

Com relação a possíveis problemas de falhas de identificação de biotipos, considerando a população negra e indígena, o SERPRO defende o projeto. De acordo com informações do porta-voz da organização, “a tecnologia já está em uso no País há mais de 4 anos e até o momento operamos com validações de todos os biotipos. Temos mais de 6,5 mil testes e nenhuma negação por razões de biotipo”.

No caso de passageiros não serem reconhecidos pela tecnologia no pós-cadastramento, vale dizer que o embarque tradicional feito por meio do cartão de embarque com código impresso entra como a alternativa utilizada para liberação do acesso.

Organizações pedem o banimento do reconhecimento facial para vigilância em massa

Enquanto que no Brasil a tecnologia é utilizada de forma reativa, com uma finalidade específica de acordo com a necessidade em questão, no contexto internacional, o RF é uma tecnologia preditiva que tem cada vez mais dados coletados para seu aprimoramento e algoritmos que funcionam cada vez melhor — ao menos, em teoria.

Em ambos os casos, no Brasil ou no exterior, o uso questionável da tecnologia (e, por vezes, até imoral e antiético) é fator comum. “Fora do Brasil, as Big Techs já estão na mira de reguladores, mas no Brasil o mercado de RF possui diversos participantes e não está na mira da regulação. Até mesmo milícias usam a tecnologia para manter seu controle sobre alguns locais”, afirma Zanatta, representante do Data Privacy.

As organizações que buscam regulamentar a tecnologia afirmam que ela ainda é invasiva e representa uma violação de direitos quando implementadas nas ruas.

“Algumas tecnologias de vigilância são tão perigosas que inevitavelmente causam muito mais problemas do que resolvem. O uso de reconhecimento facial e tecnologias biométricas remotas em espaços acessíveis ao público permite vigilância em massa e vigilância direcionada discriminatória. Nesses casos, o potencial de abuso é muito grande e as consequências muito graves”, diz a carta aberta, assinada por mais de 200 organizações da sociedade civil, ativistas, tecnólogos e outros especialistas em todo o mundo — incluindo signatários brasileiros — e cuja intenção é pedir pelo banimento do uso da tecnologia.

Na esfera governamental, a questão do armazenamento de dados biométricos é crítica. Para Carolina Reis, pesquisadora do LAPIN, “ainda não há uma estrutura robusta que garanta o bom uso dos dados captados por tais sistemas e chama a atenção a ausência de informações para o consumidor final quanto ao uso da tecnologia”.

Ainda que organizações como o SERPRO defendam o uso do RF para aplicações rotineiras como no projeto Embarque + Seguro, o tratamento dos dados continua sendo um desafio. “No caso do RF em aeroportos, o reconhecimento é feito 1:1 [compara-se uma face com outra], o que é diferente de algo como vigilância nas ruas”, explica Veronica, da AccessNow.

A especialista aponta que o uso nesse modelo 1:1 “está ficando muito popular em sistemas de gerenciamento de identidades” e que “o problema é que a implementação presume que a informação biométrica é infalível, segura — o que, inclusive, não é verdade”.

“Acreditamos que organizações como o SERPRO deveriam parar o uso do RF até que possam provar que é seguro, inclusivo, que não tende a erros e é o único método de autenticação possível”, afirmam as organizações signatárias da carta WhyID.

Com as visões divididas de organizações representantes da sociedade civil, do governo e de profissionais da área de tecnologia, o RF evolui de forma morosa. Ainda assim, ela é uma das tecnologias cuja adoção mais cresce no Brasil.

Resta saber o quanto as características de armazenamento de dados e viés estão sendo levadas em conta para que iniciativas como o Embarque + Seguro possam ser expandidas para todo o Brasil.


E você, leitor, o que acha sobre todas as questões abordadas no texto? Queremos saber a sua opinião nos comentários!

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