A história por trás de System Shock é uma recheada de turbulências e grandes acontecimentos que, de uma forma ou de outra, acabaram roubando a atenção deste clássico dos videogames. A marca é comumente atrelada a anos com grandes ocorrências – o jogo original saiu em 1994, mesmo ano da morte de Ayrton Senna, da conquista do tetracampeonato da seleção brasileira de futebol, a America Online criou o que viria a ser o padrão do acesso discado massificado à internet.

Avançando quase 30 anos, System Shock recebeu um reboot que, veja só, também veio em um 2023 bastante turbulento: nos games, ele acabou ofuscado por The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom e os eventuais lançamentos de Final Fantasy XVI e Street Fighter 6 enquanto, noutras searas, o ciclone Freddy mata 1400 pessoas no Oceano Índico, a OMS declarou o fim da pandemia da COVID-19 e a guerra russo-ucraniana vem tomando ares cada vez mais problemáticos.

Em meio a tudo isso, você estaria mais que perdoado se o reboot de System Shock, um jogo de aventura em primeira pessoa que aproveita muitos temas que, mesmo hoje, estão em alta, passasse debaixo do seu radar: ele saiu hoje, 30 de maio, para PlayStation 4, PlayStation 5, Xbox One, Xbox Series S/X, Windows, MacOS e Linux. Mas a chegada até aqui não foi das mais fáceis e, para todos os efeitos, o projeto quase deixou de existir.

System Shock e a prova de que games podem ser cult

Produzido pela finada Looking Glass, o jogo original vendeu 170 mil cópias, o que, de acordo com diversas publicações da época, era um número “até ok” (sério, foi assim que o Gamespot se referiu a ele), mas não exatamente se traduzia no mesmo volume de um “blockbuster”. Comparações da época o colocaram em patamar de leve similaridade com “DOOM”, embora System Shock fosse mais elaborado.

O que o desfez em popularidade foi a dificuldade de dominar os controles básicos da época, bem como os requisitos de hardware mínimos serem considerados altos para a ocasião: pelo menos 4 MB de memória, computador com suporte a modos de vídeo SuperVGA, VESA e VGA, processador Intel i486 DX…é, sabemos: hoje até mesmo o mais fraquinho dos smartphones faz o triplo disso dando risada. Mas acredite: na primeira metade da década de 1990, um PC assim era considerado artigo de primeira grandeza.

Apesar da recepção mediana da crítica, System Shock viria a se tornar a matriz de desenvolvimento que inspiraria inúmeros jogos que conhecemos hoje: Bioshock, Deus Ex, Prey e Dead Space são alguns dos nomes nessas linhas.

Em uma coluna veiculada pelo Gamasutra, o ex-Ubisoft Patrick Redding (hoje, diretor criativo da Warner Games) afirmou que “o fato de muitas destas funções, hoje, serem virtualmente o rigor primário de qualquer game de tiro de ficção científica é um testamento para a influência exercida para este jogo.”

Já o GameSpy, relacionando jogos para o seu Hall da Fama de 2007, afirmou que “System Shock é o progenitor dos jogos de ação com ênfase na narrativa de hoje – um grupo tão diverso quanto Metal Gear Solid, Resident Evil e até mesmo Half-Life”.

Isso basicamente sacramentou a viabilidade de um remake – o que não significa que a ideia tenha sido fácil…

Imagem mostra cena do remake do jogo System Shock

Imagem: Nightdive Studios/Prime Matter/Divulgação

O caminho até o clássico revisitado

A narrativa original de System Shock se passa no ano de 2072, e a tecnologia permeia a maior parte da vida humana. Assumindo o papel de um hacker (cujo nome você quem decide), seu objetivo é reverter o estrago em uma estação espacial, causado por uma inteligência artificial chamada SHODAN, que tomou o controle da área e rebelou todos os robôs contra seus operadores humanos – estes, inclusive, acabaram passando por mutações por causa das maquinações da IA maligna.

O reboot segue mais ou menos a mesma linha, com adaptações aqui e ali, mas o “grosso” do enredo se mantém o mesmo. A diferença, segundo alguns reviews que estamos lendo na imprensa internacional, fica para a situação contextual – o que levou o hacker protagonista a trabalhar contra SHODAN? Como a IA conseguiu se livrar de suas amarras tecnológicas (tão familiares a nós graças aos impedimentos do ChatGPT) e tomar posse da estação?

Tudo isso é algo que o remake busca contextualizar de forma aprofundada, a fim de dar sentido prático ao que o jogador mais atento aos detalhes e à lore de System Shock possa buscar. A ideia do reboot foi originalmente concebida após os estúdios Nightdive adquirirem os direitos pela marca, eventualmente lançando, em 2012, uma versão distribuída digitalmente do jogo e de sua continuação – System Shock 2 – nas plataformas atuais dos jogos de PC. Em 2015, após isso, é que veio o primeiro anúncio do desejo de fazer um remake.

Imagem mostra cena do remake do jogo System Shock

Imagem: Nightdive Studios/Prime Matter/Divulgação

O objetivo era produzir o novo jogo por meio de plataformas de financiamento coletivo, com uma página dedicada no Kickstarter estabelecendo uma meta de US$ 900 mil (R$ 4,55 milhões, aproximadamente). Embora os fundos fossem assegurados rapidamente, o jogo originalmente seria exclusivo para PC e Xbox One. Entretanto, o projeto cresceu, contemplando versões para MacOS, Linux e PlayStation 4.

Dentro de um hiato de desenvolvimento, avançamos para 2017, quando, durante a Game Developers Conference (GDC) daquele ano, os estúdios Nightdive anunciaram que recomeçariam o desenvolvimento do zero – confirmando a mudança do motor gráfico, abandonando a Unity em favor da Unreal Engine.

Com isso, o time também confirmou que estaria atualizando mais aspectos do game, efetivamente deixando a percepção de “remaster” para assumir uma posição mais correta de “remake” – segundo o diretor Jason Fader disse na época, muitos pontos do original estavam datados e precisavam de uma repaginada: o design de níveis foi o maior exemplo dado pelo executivo.

Em fevereiro de 2018, o time confirmou que o reboot de System Shock estava com o desenvolvimento paralisado, citando uma “fuga” dos conceitos estabelecidos pelo jogo original e, mais além, uma necessidade de mais financiamento. O CEO do estúdio, Stephen Kick, chegou a confirmar a abordagem a grandes publishers para este fim, mas ninguém se interessou.

Em março do mesmo ano, também durante a GDC, o time anunciou mais um recomeço, desta vez com uma equipe renovada, e justificando como problema o “feature creep”. O termo é comumente aplicado em mecanismos de software onde a empolgação por colocar novas e novas funções acabam “engordando” um projeto negativamente, fazendo com que ele fuja da ideia central. Pense no bloatware de algumas fabricantes de smartphones, com seus apps proprietários que ninguém gosta, e você vai entender.

Imagem mostra cena do remake do jogo System Shock

Imagem: Nightdive Studios/Prime Matter/Divulgação

Entre maio e junho, no entanto, dois choques fizeram com que o desenvolvimento, embora seguindo firme, passasse por questionamentos: em maio, a Tencent adquiriu os direitos de System Shock 3 e, em junho, o produtor Chris Avelone, envolvido no projeto desde o início, foi acusado de assédio sexual em outros projetos. O estúdio Nightdive sofreu para esclarecer que, de um lado, Avelone não estava mais participando do reboot desde 2017 (algo até então não divulgado) e que a Tencent meramente comprou a capacidade de produzir sequências ao original, então o remake permanecia não afetado.

A partir daí, acordos com a publisher Prime Matter asseguraram – e depois adiaram – lançamentos previstos para 2021 e 2022 até que, eventualmente, chegou maio de 2023, onde o jogo finalmente viu a luz.

A crítica

O remake de System Shock está enfrentando, enfim, o crivo da crítica especializada e, felizmente para o time da Nightdive, os elogios estão até sobrando:

“O estúdio Nightdive provou, mais uma vez, que entende completamente o que torna os clássicos tão indispensáveis.” – Destructoid

“Essencialmente, a Citadel Station [ambientação do jogo] é um puzzle gigante que você tem que resolver por dentro, e solucionar esse quebra-cabeça enquanto luta pela própria vida é sempre algo engrandecedor. As lições que System Shock podem ensinar podem ser diferentes daquelas de 30 anos atrás, mas graças à restauração do estúdio Nightdive, ainda há muito o que se aprender com o horror de ficção científica original da Looking Glass.” – The Guardian

Imagem mostra cena do remake do jogo System Shock

Imagem: Nightdive Studios/Prime Matter/Divulgação

“De uma forma geral, este é um remake bem sólido, que deveria servir de base para o que a jogatina moderna deveria usar no futuro. Ainda que tenha algumas pontas soltas, ainda é uma experiência geralmente aproveitável que, mesmo com um design frustrante, ainda pode oferecer horas de entretenimento como um jogo de ação com elementos de horror cibernético.” – WCCFTech

“[A] SHODAN é o que torna partes desse jogo verdadeiramente especiais, mesmo que com algumas falhas. Felizmente, os menus impenetráveis de Excel do jogo original ficaram para trás. Mas o Nightdive não usa da mesma abordagem que a Capcom e Square Enix para esse remake; eles na verdade foram bem flexíveis em sua missão de atualizar o jogo original. Como resultado, não há nenhuma habilidade absurda ou jeitos intrincados de se movimentar pelo cenário (vide Prey), ao contrário do que os mais novos possam esperar. Ao final de tudo, System Shock recria fielmente um clássico, retendo a maior parte do seu apelo, mas repaginando tudo com uma pegada mais voltada ao horror e, como resultado, torna tudo mais palatável para todos os perfis.” – Eurogamer

Obviamente, é pouco provável que System Shock chegue perto da briga pelo troféu de Jogo do Ano de 2023. Como estabelecemos lá no começo do texto, a competição é simplesmente grande demais para que este remake consiga sequer cogitar a participação.

Mas não se surpreenda se o vermos em mais categorias do que estamos esperando. Afinal, depois de todo o trabalho e os percalços enfrentados pelo time de desenvolvimento, ver este clássico sub apreciado em sua época original receber o devido tratamento pelo seu remake é algo que dá aos jogadores mais velhos um sabor diferenciado, e aos mais novos, um acesso mais contemporâneo a algo que inspirou tantos títulos que conhecemos e amamos.

Galeria de imagens

‘System Shock’ e o renascimento de um clássico dos games
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