[Especial] Mods de jogos: o que são, como são feitos e como sobrevivem
Na linha tênue da legalidade, os mods conseguem expressar a essência da comunidade gamer: a paixão imensurável por videogamesBy - Igor Shimabukuro, 26 maio 2023 às 11:43
Quando se fala em jogos de videogame, é bem difícil existir um consenso — afinal, cada gamer tem seus próprios gostos e preferências. Mas apesar das diferenças individuais, há “algo” que abrange todo o setor e figura com carinho no coração dos jogadores de forma quase unânime. Quem? Os mods de jogos.
E o motivo é bem simples: com ele, determinado título pode ficar do jeitinho que o usuário quer. Até porque como são criados pela própria comunidade, eles conseguem preencher lacunas, decepções pessoais ou mesmo otimizar a experiência por trás de controles e telas.
Os gráficos lançados pela desenvolvedora ficaram aquém do esperado? Pois bem, os mods dão conta disso. Faltam alguns recursos ou conteúdos para o jogo? Modificações são a resposta. Os gráficos e as jogabilidades estão perfeitas, mas falta aquele toque? É só chamar os modders.
Mods, modificações, alterações no jogo, etc
Antes de tudo, é importante entender o que, de fato, são os mods de jogos. Talvez seja difícil encontrar um gamer que não saiba do que se trata o assunto, mas uma coisa é quase certa: quem desconhece o termo possivelmente já usufruiu dele — mesmo sem saber — em algum momento da vida.
Do ponto de vista técnico, as modificações (abreviadas como mods) são basicamente alterações não oficiais feitas nos códigos de um determinado game. Não oficiais porque, diferentemente de DLCs ou expansões, essas modificações não são lançadas pela dev ou publisher de determinada propriedade intelectual (IP).
Ou seja, é a própria comunidade do jogo — formada por gamers curiosos ou desenvolvedores independentes — que se encarrega de mexer na produção original para otimizações e novas experiências.
E para melhor entendimento, vale alguns bons exemplos dos principais tipos de mods existentes.
- Modificações com foco em otimizações gráficas
Mods que buscam melhorar o visual do jogo, com mudanças em texturas, adições de ray tracing, otimizações na iluminação, inclusão de modos HD e afins.
- Modificações que adicionam conteúdos
Alterações que trazem conteúdos inéditos ao game, como adição de personagens de outras franquias, inclusão de times não localizados (em casos de games de futebol), acréscimo de ações e mudanças do tipo.
- Modificações que alteram a jogabilidade
Este tipo de mod geralmente remodela a experiência do título original e traz mudanças bruscas, como nova perspectiva de visão do jogador (de 1ª para 3ª pessoa ou vice-versa) e novas formas de jogabilidade — a exemplo de modificações para players aracnofóbicos.
Os bastidores por trás da criação de um mod
Uma vez explicado o que são os mods, está na hora de descobrir como eles são feitos. Sim, ficou claro que basicamente alguém pega os códigos originais do jogo e faz alterações aqui e acolá. Mas fato é que existem muitos processos por trás dessa mera explicação simplista.
O primeiro ponto é compreender que existem dois tipos de jogos: os que têm suporte nativo para as modificações e os que não têm.
No caso dos games com suporte nativo — a exemplo de Skyrim e Minecraft —, a situação é bem mais fácil. Afinal, as próprias empresas disponibilizam ferramentas e tecnologias para a criação de mods dentro dos limites que elas estipulam.
Neste bolo está o icônico Bomba Patch de PlayStation 2, criado em 2007 por Allan Jefferson (modder e empresário), que abusou das próprias ferramentas nativas do Winning Eleven para editar clubes, jogadores, escudos e ligas e tornar o jogo de futebol mais brasileiro do que nunca.
“No caso do Bomba Patch, criado em cima do Winning Eleven, o mod foi possível devido ao menu editar do próprio jogo, o que facilitou a manipulação de arquivos. E com isso, conseguimos editar uniformes, estádios e faces dos jogadores sobrepondo o arquivo criado sobre o arquivo original”, contou o modder ao blog KaBuM!.
“Mas e os jogos que não possuem suporte nativo para mods?”, devem estar se perguntando alguns. Nestes casos, o buraco é bem mais embaixo, como conta Daniel Santos, modder de apenas 19 anos e contribuidor assíduo do fórum MixMods.
“Existem jogos que não disponibilizam ferramentas de mods. E aí, cabe a nós modders, criarmos. Isso envolve um processo bem manual com dezenas de ferramentas para a famigerada engenharia reversa, que é uma prática muito comum em qualquer processo que envolve o entendimento de novas tecnologias”, explicou o modificador.
Segundo Santos, a engenharia reversa permite uma melhor compreensão do funcionamento do game, o mapeamento de funções e classes, e o entendimento das variáveis do título. A partir daí, é possível usar ferramentas para expandir o código do jogo ou para acessar, modificar e até substituir por inteiro as funções.
Na grande maioria das vezes, o modder tem de trabalhar em C e C++, que são linguagens mais flexíveis para hacking e trazem bibliotecas que facilitam a manipulação da memória de um game. Eventualmente, no entanto, habilidades com Photoshop, modelagem e programação também serão exigidos do modder.
Complexo, certo? Bastante. A boa notícia é que isso tem se tornado mais fácil de uns tempos pra cá, muito em função da evolução dos motores de jogos e de versões gratuitas disponibilizadas para devs. Como resultado, os jogos passaram a ter um mesmo padrão. E isso também facilitou a vida dos modders.
“A cena de desenvolvimento de jogos foi passando de um cenário heterogêneo, cheio de técnicas diferentes que exigiam criações de engines próprias para modificações, para motores de jogos uniformes, sólidos e que têm funcionamentos pré-estabelecidos”, pontuou Santos. A Unreal [da Epic Games] tem o formato de asset pack dela, com grandes arquivos empacotados. E a partir do momento que você entende como funciona um jogo, você entende como funcionam vários deles. Com isso, é possível aplicar as mesmas técnicas de modificações, e isso resulta em criações de mods de forma muito mais rápida”, acrescentou.
Entre a criatividade e os riscos
Mas assim como é inevitável falar de jogos sem abordar os mods, não há como debater sobre as modificações sem tocar no tema legalidade. Até porque não faltam eventos na indústria que deixam a comunidade gamer confusa em cravar se as alterações em games são ou não legais.
E de forma curta e grossa: depende. Do mesmo modo que existem empresas que estimulam modificações e até disponibilizam ferramentas para isso, há desenvolvedoras/publicadoras que não encaram os mods com bons olhos, os enquadram como ilegais e até entram na justiça para “defender” suas propriedades intelectuais.
Aliás, Nintendo e Take-Two são bons exemplos deste segundo caso. A Big N, por exemplo, já é conhecida por sua postura rígida contra qualquer produto não licenciado e não oficial baseado em suas IPs. E como os mods entram nisso, é muito comum ver uma modificação recém-lançada ser derrubada em questão de dias.
No caso da Take-Two, a empresa mudou sua postura nos últimos anos. Por mais que permitisse e até estimulasse alterações nos primeiros títulos da franquia GTA, a empresa começou a perseguir modders nos últimos anos e recentemente processou desenvolvedores das modificações re3 e reVC de GTA. A ação, no entanto, foi arquivada no mês passado após um acordo entre ambas as partes.
Brigar com unhas e dentes para manter a sua criação original faz certo sentido. Até porque a posse de determinada propriedade intelectual é restrita às desenvolvedoras, que estipulam o que querem e o que não querem ver em criações derivadas.
O ponto é que essa visão das empresas pode ser um grande tiro no pé. Isso porque os mods não só fazem uma propaganda gratuita do jogo em questão, como também aumentam a “vida útil” do título. Por que será que ainda existem tantos players de Skyrim, por exemplo? Se alguém sugeriu que é por conta das modificações, provavelmente está certo.
“As empresas querem ter total controle do produto oferecido do início ao fim de seu ciclo, mas devem saber que um mod pode popularizar seu jogo mais do que a versão original. Muitas vezes, um game não é atrativo a certa região por conta da cultura, mas um mod pode resolver isso trazendo algo específico daquele local”, destacou Allan Santos, relembrando de sua edição feita em GTA que trouxe legendas em português, músicas nacionais e outras coisas do Brasil.
A opinião se alinha com o entendimento de Daniel Santos, que enxerga um certo receio das empresas com as modificações por acreditarem que elas tendem a afetar seus lucros ao se enquadrarem como uma espécie de “concorrente”, quando na verdade podem ser grandes aliadas.
“Muitos não deixam de jogar títulos por conta dos mods, mas podem descartá-los mais cedo sem os mods”, destacou o modder.
Fora tudo isso, a postura rígida das devs também não parecem considerar a essência dos mods: a paixão da comunidade pelos jogos.
“Modificações são formas de expressar a liberdade dentro da comunidade gamer. Criar algo relacionado para jogos é uma forma de demonstrar amor que você tem por aquela franquia, por aquele jogo, por aquela plataforma. O apoio é uma coisa que fortalece a comunidade”, completou.
Cenário promissor para mods e modders
Complicações com donas de propriedades intelectuais à parte, a boa notícia é que o horizonte parece trazer bons ventos tanto para as modificações quanto para os modders.
Isso pode ter ficado claro na declaração de que o desenvolvimento de tecnologias e motores de jogos estão facilitando os profissionais que fazem alterações em jogos. Ou pela conclusão natural que se tira ao analisar o avassalador crescimento da indústria de videogames nos últimos anos — principalmente após a pandemia iniciada em 2020.
Mas atualmente vemos ume tendência em games de mundo aberto. E esse hype pode acabar estimulando mais modders e, consequentemente, mais modificações.
“Minha visão é que a cena de mods é muito relacionada a determinadas épocas e a jogos que estão em desenvolvimento no momento. E como a tendência do mercado tem sido a criação de títulos de mundo aberto, que trazem imensos potenciais e possibilidades, é possível que surjam comunidades de mods tão fortes como as de antigamente”, finalizou Daniel Santos.
Vale destacar que ser modder não é tarefa fácil. Sem contar o grande esforço em trabalhar com a imensidão de códigos, o “cargo” é muito mais visto como um hobby do que como uma profissão — até porque os mods geralmente são disponibilizados gratuitamente e as retribuições financeiras se limitam a doações da própria comunidade.
E talvez seja esse mesmo o ponto, parafraseando Allan Santos: “a maioria dos modders é motivada pela paixão”. E a julgar que a indústria de jogos se renova constantemente e está longe de se extinguir, é fácil cravar que a cena de mods e modders se estenderá por longas décadas.
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