Embora tenham se aproveitado do “boom” durante a pandemia, os jogos NFT (ou games blockchain) nunca tiveram aceitação unânime. Negar o crescimento recente do setor seria loucura, é verdade, mas é possível que todo o hype no segmento tenha fomentado um falso interesse da indústria dos videogames por esses elementos da Web3.

Isso significa que o jogos play-to-earn (“jogar para ganhar”, em tradução livre) não passaram de um delírio coletivo? Não necessariamente: a marca de US$ 5,17 bilhões atingida por jogos NFT em 2021 talvez seja uma prova de que há uma parcela do mercado realmente atraída pela categoria.

Mas pesquisas recentes mostram que a incorporação de ativos blockchain no universo gamer não tem sido vista com bons olhos, colocando em xeque o real valor dessas tecnologias no mundo dos jogos.

Ativos blockchain em games? Não, obrigado

Uma boa prova disso pode ser encontrada no levantamento State of the Game Industry 2022, realizado pela Game Developers Conference (GDC). O relatório anual publicado em março questionou mais de 2.700 desenvolvedores de jogos a respeito de seus trabalhos e da indústria como um todo. Mas claro: perguntas sobre NFTs, criptomoedas e afins no universo gamer não ficaram de fora da edição deste ano.

Neste sentido, um dos tópicos da pesquisa foi justamente analisar qual é o real interesse dos estúdios nessas tecnologias. Surpreendentemente, 72% dos respondentes não se mostraram interessados em criptomoedas e 70% revelaram desinteresse em tokens não fungíveis.

Pesquisa blockchain - GDC

Imagem: Reprodução/State of the Game Industry 2022

Para piorar a situação para os entusiastas de blockchain, apenas 6% e 7% mostraram-se muito interessados em moedas digitais ou NFTs, respectivamente. E em ambas as perguntas, 1% dos respondentes afirmaram já estar utilizando algumas dessas tecnologias em seus jogos.

“Mas isso é apenas uma visão geral da indústria lá fora e no Brasil deve ser diferente”, podem estar pensando alguns. Errado: a Pesquisa da Indústria Brasileira de Games 2022 revelou um cenário bem parecido em solo tupiniquim, no qual a maioria dos estúdios parece rejeitar esses elementos da Web3.

Dos 213 respondentes, 114 (54%), 122 (57%) e 113 (53%) afirmaram não ter interesse em blockchain, criptomoedas e NFTs, respectivamente. A taxa de “muito interessados” beirou os 13%, enquanto o índice de estúdios que já estão utilizando esses elementos apontou uma média de apenas 8,6%.

Pesquisa Blockchain - ABRA

Imagem: Reprodução/Pesquisa da Indústria Brasileira de Games 2022

Nas perguntas abertas, muitos chegaram a apontar essas tecnologias — especialmente os tokens não fungíveis — como “grandes tendências para o mercado”. Mas no geral, fica nítido que existe um clima de desconfiança no ar.

Analisar números talvez seja a melhor forma para enxergar que os estúdios estão relutantes a aceitar o universo cripto e de NFTs na indústria de jogos. Mas tão importante quanto aceitar isso é entender qual o motivo dessa rejeição. E por isso, o blog KaBuM! resolveu conversar com fontes do segmento para um pouco mais de luz sobre essa questão.

Muito além do bear market

A princípio, uma simples análise de mercado poderia explicar, em partes, a razão desse desinteresse. O famigerado “inverno cripto” tem derrubado diversos ativos do segmento, deixando moedas digitais no vermelho e desacelerando o volume de negociações dos NFTs.

Em junho, as principais criptomoedas enfrentaram quedas de quase 50%. Já o OpenSea, o maior marketplace de tokens não fungíveis, viu o volume mensal de vendas de NFTs cair para apenas US$ 700 milhões — em janeiro, este mesmo índice alcançou um pico de US$ 5 bilhões.

Gráfico criptomoedas

Imagem: Reprodução/CoinMarketCap

Os resultados são acompanhados de experiências negativas que indicam que games play-to-earn já não estão mais rentáveis como no “boom” visto na pandemia. Mas a desvalorização em massa não é nem de longe o principal motivo para justificar essa rejeição por parte de estúdios e desenvolvedoras.

Para Carlos Silva, Head of Gaming na GoGamers e coordenador na Pesquisa Game Brasil (PGB), ainda há um grande dúvida sobre como essas tecnologias do universo blockchain e modelos de negócios vão contribuir na experiência gamer.

“Por ser algo novo em vários aspectos e não somente para o mercado de games, fica a dúvida em como isso será aplicado [na indústria de jogos], mas não quer dizer que não possa ser explorado de alguma maneira. O principal ponto é que qualquer tipo de funcionalidade ou recurso precisa ser aplicado de maneira que contribua para o entretenimento e diversão. A experiência de jogar jogos digitais precisa ser boa e interessante para que as pessoas se engajem”, apontou o executivo.

Faz sentido. Apesar de terem surgido em meados de 2016, os games blockchain ainda são encarados como algo novo pela indústria e muitos players sequer sabem o funcionamento de NFTs, criptomoedas e afins. Mas apesar desse fator “novidade”, há quem acredite que não há nada de inédito nesses ativos.

“Além de não adicionarem nada de novo, essas ‘tecnologias’ não servem pra nada. Era óbvio que era tudo uma questão de tempo até que o valor inventado desses sistemas decaísse, e é o que está acontecendo atualmente”, destacou Andre Chagas, criador da dev brasileira Asteristic Game Studio.

Uma boa análise destes fatores “não inéditos” de ativos blockchain pôde ser vista durante a Big Festival 2022. Em uma das palestras, Mark Venturelli, CEO e Creative Director da Rogue Snail, foi na contramão dos demais discursadores do evento e preparou um material explicando como esses elementos da Web3 não só não trazem nada de novo, como oferecem coisas piores ao que já haviam aparecido no mercado.

Para ele, diversos games passados já apresentavam elementos tidos como “novidade” nos games blockchain, mas sem a blockchain. Comércio de itens in-game? Já era visto em Team Fortress 2. Comércio de experiências na íntegra? Basicamente a premissa de Roblox. Comercializar serviços? No Man’s Sky e Final Fantasy XIV são apenas alguns exemplos.

Em suma, a rejeição por parte dos estúdios parece ser uma combinação de todos esses fatores: sistemas de monetização não inéditos em que o lucro prevalece sobre a diversão do gamer, ativos tecnológicos novos que ainda dividem opiniões e são motivos de cautela pela indústria, além de um mercado que mostra-se relativamente frágil.

E como fica o futuro?

Então quer dizer que os games blockchain apenas se aproveitaram de uma onda de especulação e estão com os dias contados? Depende. Há quem acredite nisso, quem defenda a ideia de que possa ser um novo segmento da indústria ou mesmo quem veja uma “luz no fim do túnel”.

Para Chagas, por exemplo, os jogos NFT nem ao menos devem representar algo significativo para a linha temporal gamer. “Não consideraria nem uma fase, consideraria menos do que isso. Enquanto não inventarem novas formas de enganar o público para que o valor aumente, esse sistema inteiro continuará em queda, como já vem acontecendo”, concluiu o criador da Asteristic Game Studio.

Já na visão de Silva, essas tecnologias podem ser “mais um modelo, mas que não vai inviabilizar outros meios de consumo de jogos digitais”. “Isso é positivo do ponto de vista de opções para os jogadores, ter mais opções de modelos de jogos e atender a maioria dos players”, pontuou.

E há também opiniões como a de Jhoniker Braulio, CEO da First Phoenix Studio, que mantém a aposta no mercado de games blockchain, mas com uma mudança do modelo play-to-earn para o play-and-earn, sistema em que as formas de lucro são apenas complementos a um foco voltado para diversão.

Talvez somente o futuro mostre como será o real desempenho dos games NFT no médio/longo prazo. Mas uma coisa é certa: a situação não é nada boa e se os atores quiserem alterar isso, terão de reformular os sistemas e de convencer os estúdios sobre o real valor desses ativos — se é que isso é possível.

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