Facebook não sabe o que faz com seus dados ou para onde eles vão, mostra documento
"Não temos um nível adequado de controle e explicação sobre como nossos sistemas utilizam os dados", dizem engenheiros do FacebookBy - Liliane Nakagawa, 15 maio 2022 às 20:19
Em todo o mundo, as empresas de tecnologia tentam lidar com a força dos regulamentos de privacidade que obrigam a mudança de comportamento sobre o tratamento de dados pessoais de usuários. Para o Facebook, o problema ‘fundamental’ é a própria empresa não ter ideia para onde vão todos esses dados coletados, ou que está se fazendo com eles, segundo um documento interno vazado ao Motherboard.
“Nós construímos sistemas com fronteiras abertas. O resultado destes sistemas abertos e cultura aberta é bem descrito com uma analogia: Imagine que você segura uma garrafa de tinta na mão. Essa garrafa de tinta é uma mistura de todos os tipos de dados do usuário (3PD, 1PD, SCD, Europa, etc.). Você derrama essa tinta nas águas de um lago (nossos sistemas de dados abertos; nossa cultura aberta)… e ela flui… para todos os lugares”, lê-se no documento. “Como você coloca essa tinta de volta na garrafa? Como você a organiza novamente, de modo que ela só flua para os lugares permitidos no lago”?
3PD significa dados de terceiros; 1PD significa dados de primeira parte; SCD significa dados de categorias sensíveis
O documento foi escrito no ano passado pelos engenheiros de privacidade do Facebook da equipe de Anúncios e Produtos Comerciais, cuja missão é “fazer conexões significativas entre pessoas e empresas” — o centro de estratégia de monetização e o motor que impulsiona o crescimento do Facebook, de acordo com a descrição de uma vaga que descreve a equipe.
Ela é a responsável por construir e manter o sistema de anúncios espalhados pelo Facebook — núcleo dos negócios da empresa. No documento vazado, a equipe lança um alerta sugerindo mudanças na forma como o Facebook lida com os dados dos usuários a fim de evitar problemas futuros com reguladores na Europa, nos EUA, na Índia e nos demais países que têm pressionado por restrições mais rigorosas de privacidade sobre as empresas de mídia social.
“Não temos um nível adequado de controle e explicabilidade sobre como nossos sistemas utilizam os dados e, portanto, não podemos fazer com confiança as mudanças de políticas controladas ou compromissos externos como ‘não utilizaremos dados X para fins Y’. E ainda assim, é exatamente isso que os reguladores esperam que façamos, aumentando nosso risco de erros e deturpações”, lê-se no documento.
Os próprios engenheiros reconhecem que há uma luta para fazer sentido e manter controle sobre o destino dos dados dos usuários uma vez que eles adentram o sistema do Facebook. Um problema conhecido como “linha de dados”.
Um tsunami chamado GDPR
Desde quando entrou em vigor na Europa, em maio de 2018, o Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR) tem influenciado a atitude de reguladores pelo mundo nos últimos anos ao limitarem plataformas como o Facebook de utilizarem os dados dos seus próprios usuários.
No artigo 5 do regulamento, é determinado que os dados pessoais devem ser “coletados para fins específicos, explícitos e legítimos e não devem ser processados posteriormente de forma incompatível com esses fins”. Logo, dados tidos como sensíveis pela LGPD, como a localização do usuário, ou orientação religiosa, por exemplo, só podem ser coletados e utilizados para uma finalidade específica, sem reutilização para outra finalidade.
Entretanto, em uma das várias violações cometidas pelo Facebook ao longo da história da rede social, o site Gizmodo, com auxílio de pesquisadores acadêmicos, pegou a empresa fazendo isso. Ao coletar o número de telefone fornecido pelos usuários para proteger suas respectivas contas com autenticação de dois fatores, o Facebook usou esses mesmos dados para alimentar o recurso “pessoas que você pode conhecer”, além de fornecê-los a anunciantes. Após a denúncia, a empresa foi obrigada a cessar a prática.
De acordo com especialistas jurídicos que falaram ao Motherboard, a GDPR proíbe especificamente esse tipo de redirecionamento, enquanto que o documento vazado revela a incapacidade do Facebook de limitar a forma como ele trata os dados dos usuários. O que torna questionável o cumprimento amplo dos regulamentos de privacidade devido à enorme quantidade de dados que coleta e flui dentro da companhia.
Facebook nega descumprimento dos regulamentos de privacidade
“Considerando que este documento não descreve nossos amplos processos e controles para cumprir com os regulamentos de privacidade, é simplesmente impreciso concluir que ele demonstra não conformidade. Novas regulamentações de privacidade em todo o mundo introduzem requisitos diferentes e este documento reflete as soluções técnicas que estamos construindo para dimensionar as medidas atuais que temos em vigor para gerenciar dados e cumprir nossas obrigações”, disse o porta-voz em uma declaração por e-mail.
Em relação à analogia com a tinta, o porta-voz disse que ela “carece do contexto que, de fato, temos processos e controles extensos para gerenciar dados e cumprir com as normas de privacidade”.
‘Show de merda’
Ao rever o documento, um ex-funcionário do Facebook, que pediu anonimato para evitar retaliações, chamou-o de “contundente”. “O Facebook tem uma ideia geral de quantos bits de dados são armazenados em seus centros de dados”, disse ele em um bate-papo online.
“A parte para onde [os dados] vão é, em termos gerais, um completo show de merda”.
“É uma admissão condenatória, mas também oferece cobertura legal do Facebook pelo custo para consertar esta bagunça”, acrescentou. “Isso dá a eles a desculpa para manterem tantos dados privados simplesmente porque, em sua escala e com seu modelo de negócios e design de infraestrutura, eles podem afirmar plausivelmente que não sabem o que têm”.
Especialistas de privacidade: documento mostra ‘reconhecimento’
Para especialistas em privacidade que lutam para limitar a forma como o Facebook usa os dados privados, o documento é um reconhecimento de que a empresa não pode cumprir com os regulamentos. “Este documento admite o que há muito suspeitávamos: que há um vale tudo de dados dentro do Facebook, e que a empresa não tem nenhum controle sobre os dados que possui”, disse Johnny Ryan, ativista de privacidade e membro sênior do Conselho Irlandês para as Liberdades Civis, em um bate-papo online. “É um reconhecimento claro da ausência de qualquer proteção de dados”. O Facebook detalha como ele quebra cada princípio da lei de proteção de dados. Tudo o que ele faz com nossos dados é ilegal. Você não está autorizado a ter um vale tudo de dados internos”.
‘Fonte e finalidade’
“Os consumidores e reguladores ficariam e deveriam ficar chocados com a magnitude e desordem dos dados dentro dos sistemas do Facebook”, comentou Jason Kint, CEO da Digital Content Next, uma organização comercial que representa os editores de jornalismo e um franco crítico do Facebook.
Para ele, a metáfora eloquente mostra que a companhia dirigida por Zuckerberg não consegue acompanhar a “fonte e finalidade” dos dados que ela coleta. Kint se refere ao artigo 5 da GDPR, que estabelece o princípio da “limitação de propósito”.
O princípio, de acordo com Ryan, responsabiliza às empresas de informarem aos usuários e reguladores sobre a forma como cada pedaço específico de dados é usado e a razão específica pela qual eles estão coletando-os. A limitação de propósito foi criada para proteger a privacidade das pessoas.
Sob este mesmo artigo, o ativista processou o Google na Irlanda em 2020, acusando a empresa de violar o princípio “com suas “várias centenas de propósitos de processamento que estão confinadas em uma vasta e interna informação livre para todos”.
A defesa de Ryan, Ravi Naik, disse que se reguladores considerassem o Facebook em uma violação da GDPR, a empresa estaria sujeita a multas administrativas de até 4% da receita global além de abrir precedentes para ordenar uma suspensão sobre determinadas formas de processar de dados. Cada usuário da rede social também poderia acionar à justiça solicitando informações sobre o que o Facebook faz com os dados, como Naik e Ryan estão fazendo com o Google.
Facebook está tentando se antecipar a mais leis de privacidade, dizem funcionários
Em defesa, dois funcionários do Facebook tentaram explicar como a empresa trata os dados internamente. Segundo eles, a empresa está tentando se antecipar a mais leis de privacidade e construir uma infraestrutura para atender a exigências hipotéticas.
Isso significa mais investimento em ferramentas de análise de dados dos usuários e conhecimento dos pontos possíveis para aplicar automação, livrando o envolvimento humano no processo. Segundo os representantes entrevistados, isso demandaria investimentos significativos, mas que isso é uma prioridade para a empresa.
Eles adicionaram que o Facebook não tem controle técnico sobre cada dado, entretanto, afirmam que existe algum mecanismo para gerenciá-los: como uma marcação de exclusão dos dados que o usuário optou por não usar para publicidade, deixando claro que não podem ser usados para certos fins.
‘Anúncios Básicos’: a resposta “a curto prazo” aos regulamentos
Além da preocupação dos engenheiros com os dados de usuários, o documento interno também cita um “novo” produto: os ‘Anúncios Básicos’, o qual se referem como uma resposta “a curto prazo” às exigências dos regulamentos em todo o mundo. “Quando lançado, os usuários do Facebook poderão ‘optar por não ter quase todos os seus dados 3P [terceiros] e 1P [primeira parte] usados pelos sistemas de Anúncios – likes de páginas, posts, lista de amigos, etc.”, diz o documento.
O documento ainda diz que os Anúncios Básicos “precisam estar prontos para lançamento na Europa até janeiro de 2020”. Após dois anos a partir do escrito, a empresa ainda não lançou a ferramenta, mostrando que está atrasada em relação ao prazo estabelecido pelos próprios funcionários.
Ao ser questionado sobre os Anúncios Básicos, o Facebook se recusou a comentar. Já os representantes disseram que o nome seria um código interno, e que o produto mostrará que a empresa pode construir publicidade que seja relevante para os usuários, preservando sua privacidade.
Legisladores europeus e americanos pedem uma supervisão mais próxima
Após as revelações do documento interno do Facebook, legisladores americanos e europeus pediram uma supervisão mais dura sobre o gigante da tecnologia para garantir a conformidade para com as regulamentações existentes, como a GDPR, Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia, e outras regulamentações governamentais voltadas para proteger a privacidade dos usuários.
“A ideia de que o Facebook não entende para onde vão seus dados ou quem os está usando é decepcionante e alarmante, mas, francamente, totalmente sem surpresas. Há anos, venho chamando no Facebook para salvaguardar melhor os dados dos usuários e respeitar a privacidade dos mesmos. Seu desprezo irresponsável pela privacidade e segurança dos dados de seus usuários ressalta a necessidade urgente de regulamentação para forçar as empresas de tecnologia a melhorar seu comportamento”, disse o senador democrata Mark Warner em uma declaração enviada via e-mail.
Em resposta às críticas dos legisladores, um porta-voz da Meta disse que as “alegações são infundadas e deturpam completamente a forma como administramos os dados”.
Enquanto que do outro lado do oceano, o Parlamento Europeu, próximo de adotar um conjunto de leis que visam regular as empresas de tecnologia, também teceu duras críticas ao Facebook.
Martin Schirdewan, que representa a Alemanha no Parlamento desde 2017, disse em um e-mail ao Motherboard que “o Facebook prova repetidamente com sua ignorância em relação à proteção de dados, que eles são uma máquina de dinheiro sem consciência”. Claramente o Facebook esqueceu de programar a empatia do usuário em sua placa-mãe”.
“A solução é controlar politicamente o modelo de negócios inescrupuloso da Big Tech”. A proteção de dados pessoais deve ser assegurada por meio de uma proibição de publicidade e perfil personalizados. As práticas comerciais das empresas digitais roubam os usuários e violam sua liberdade e direitos pessoais”, acrescentou Schirdewan. “A DSA proibirá a publicidade personalizada para menores de idade e o uso de dados sensíveis, o que é um sucesso para a proteção dos usuários, mas não o suficiente para mudar o comportamento inescrupuloso do Facebook e da companhia.”.
Comentários