EUA pressionou inteligência britânica para impedir publicação sobre revelações de Snowden
Whistleblower estava em posse de documentos que comprovavam coleta em massa de dados de cidadãos estadunidenses e do mundo pela agência de segurança nacional norte-americana (NSA)By - Liliane Nakagawa, 3 setembro 2022 às 9:38
Em maio de 2013, o ex-funcionário da NSA Edward Snowden denunciava ao mundo a coleta de dados em massa e os inúmeros programas globais de vigilância conduzida pela agência. Os documentos ultrassecretos que comprovavam os fatos foram entregues a repórteres do The Guardian, que publicaram junto ao The Washington Post inúmeras reportagens sobre a existência e as funções desses programas secretos. Quase uma década depois, uma publicação afirma que a NSA tentou persuadir o Reino Unido a parar a publicação do jornal britânico.
A informação é do cineasta e jornalista investigativo Richard Kerbaj contada no livro ‘The Secret History of The Five Eyes: The untold story of the international spy network’ (‘A História Secreta dos Cinco Olhos: a história não revelada sobre a rede internacional de espionagem’, em tradução livre) lançado nesta quinta-feira (1º). Nele, Kerbaj conta que o chefe da Government Communications Headquarters (GCHQ) – equivalente a uma NSA do Reino Unido – Iain Lobban foi chamado na madrugada de 6 de junho de 2013, mas rejeitou a sugestão de que a agência britânica deveria censurar a publicação do jornal em nome do parceiro estadunidense. https://www.theguardian.com/us-news/2022/aug/31/edward-snowden-nsa-gchq-guardian-book
Embora tenha declinado o pedido, a GCHQ esteve na redação do The Guardian quase cinco semanas após as publicações para forçar a destruição dos arquivos entregues por Snowden, em um ato puramente simbólico, visto que o mundo já tinha ciência das informações entregues pelo whistleblower e o material já havia sido compartilhado com outros jornais para apuração como The New York Times.
A ligação na madrugada e a recusa do ex-chefe da GCHQ geraram mal-estar na aliança dos Cinco Olhos, o primeiro de vários causados pelo ex-NSA, atualmente refugiado em terras russas. Apesar da ciência da importância do bom relacionamento entre as duas agências de inteligência, Lobban pensou que “a proposição de pressionar um jornal a parar o artigo para o bem da NSA parecia ir longe demais”.
“Não era nem o propósito de sua agência nem o seu próprio para lidar com as relações públicas da NSA”, escreve Kerbaj.
Em outubro do mesmo ano, foi a vez do governo de Davi Cameron ameaçar com o uso de medidas e outras “mais dura” para impedir mais publicações sobre a coleta em massa de comunicações por telefone e pela internet pelos órgãos de inteligência britânica e norte-americana. Apesar do esforço, a DA-Notice, órgão que alerta a mídia britânica sobre possíveis riscos à segurança nacional causados por publicações, disse na época ao Guardian que nada do que havia sido publicado havia colocado vidas britânicas em risco.
A relação entre NSA a GCHQ ficou ainda mais abalada quando o general Keith Alexander não informou Lobban de que os norte-americanos haviam identificado Snowden, um contratado do governo baseado no Havaí, como fonte das recentes publicações que rodavam o mundo, deixando a GCHQ continuar as buscas por conta própria. A inteligência britânica ficou ciente da identidade de Snowden apenas quando ele foi a público em uma entrevista para o The Guardian, no início de junho de 2013.
Foi um lembrete desconcertante de como você é importante, ou como não é importante”, disse um informante sênior da inteligência britânica citado no livro.
A série de constrangimentos se seguiram à medida que as reportagens denunciavam cada uma delas envolvendo várias nações do mundo, incluindo aliados e os próprios parceiros dos EUA no G20. O material divulgado citavam além da NSA e a GCHQ, a inteligência australiana (ASD) e a neozelandesa (NZIZ), parceiros do Five Eyes, que compartilhavam o banco de dados.
Embora indignados com a “descuido” dos Estados Unidos em relação a Snowden, um administrador de sistemas terceirizado pelo governo com amplo acesso aos segredos das inteligências – à época, 1,5 mil funcionários tinham autorização máxima como do ex-agente –, apenas os representantes britânicos questionaram abertamente as práticas dos EUA em um encontro entre funcionários da coalisão no fim daquele conturbado ano na Austrália.
O restante dos aliados não estava preparado para desafiar os norte-americanos por receio de ser excluído do circuito de inteligência. Entretanto, os britânicos acabaram reavaliando a frustração para com os colegas da NSA ao pensar no valor da inteligência e no financiamento provido pela agência estadunidense.
“Os Estados Unidos nos dão mais do que nós lhes damos, então temos que basicamente continuar com isso”, disse o ex-conselheiro de segurança nacional do Reino Unido, também citado no livro.
The Secret History of The Five Eyes: The untold story of the international spy network
Para escrever ‘The Secret History of The Five Eyes’, o jornalista usa de seus 15 anos de experiência em reportagens premiadas sobre segurança nacional. No currículo, Kerbaj já entrevistou mais de 100 oficiais da inteligência, incluindo o já citado ex-diretor do GCHQ Iain Lobban, o diretor geral da CIA David Petraeus, a diretora geral do MI5 Eliza Manningham-Buller, o diretor da NSA Almirante Mike Rogers, o conselheiro de Segurança Nacional Britânico Kim Darroch, o chefe da ASIO Mike Burgess, o chefe do Serviço Canadense de Inteligência de Segurança Richard Fadden e Ciaran Martin, funcionário que supervisionou as avaliações britânicas sobre a possível participação da chinesa Huawei no papel de criação da rede 5G no Reino Unido.
Em 2014, Snowden descreveu a aliança dos Cinco Olhos como uma “organização de inteligência supranacional que não obedece as leis de seus próprios países”, visto que ao espionar os cidadãos e compartilhar informações entre os associados, eles contornam regulações domésticas restritivas de espionagem.
A rede dos Cinco Olhos (Fvey) também chamada pelo codinome Echelon, é composta por cinco países membros, entre eles Canadá, Austrália, Nova Zelândia, além dos países cocriadores, Estados Unidos e Reino Unido. Acreditava-se que as operações dessas nações em conjunto tinham terminado com a União Soviética durante a Guerra Fria.
Entretanto, a rede Echelon formada em 1956 foi reconhecida publicamente em 2010 graças às publicações do WikiLeaks, em especial com o cabo “Secret – Not for Foreign Eyes”, escrito em 2004, que além de estabelecer o cenário para a visita do então Presidente George Bush ao Canadá, tratava do compartilhamento de informações internacionais, do qual a Nova Zelândia faz parte, com a base de espionagem Waihopai em Marlborough.
Além do Five Eyes, há outras alianças formadas por nações adicionadas aos Cinco Olhos, como o Seis Olhos, Nove Olhos, 14 Olhos e 41 Olhos.
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