Crítica: Priscilla, de Sofia Coppola, é uma construção linda e um retrato perturbador dos bastidores do glamour
O longa retrata o relacionamento nu e cru entre Priscilla e Elvis Presley - do momento em que se conheceram até o ponto em que se separaram (e todo o abuso nos entremeios)By - Tissiane Vicentin, 4 janeiro 2024 às 12:47
Priscilla, o novo filme de Sofia Coppola, chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (4). O blog KaBuM! teve acesso antecipado ao longa para poder realizar a crítica, que você pode ver logo abaixo, após o trailer oficial.
Acho que podemos começar esta crítica falando sobre uma percepção geral do filme. Primeiro, acredito que o longa não vai agradar todo mundo, especialmente porque ele não é para ser um filme sobre Elvis Presley e sim, sobre Priscilla Presley.
E, apesar do título do longa deixar isso bem claro, também acredito que muitas expectativas podem ser confundidas antes de assisti-lo, o que torna a experiência potencialmente uma “decepção” (algo que eu quero já destacar que não é a minha visão, mas pode ser a sua caso você entre no cinema com a expectativa às avessas).
Segundo ponto: se você é muito fã de Elvis, esqueça qualquer filme que tenha Presley como protagonista, ou quaisquer documentários que você tenha visto. O máximo que você chegará perto de um show de Elvis em Priscilla é no momento em que ele entra no ônibus, rumo a alguma tour rotineira.
De novo, não custa salientar – este não é um filme sobre Elvis.
Expectativas alinhadas, vamos à crítica.
Priscilla por Priscilla
Acho que ao mencionar na abertura deste texto que é para ignorar o fato de que o filme é também sobre Elvis, mas não apenas, já dá linha para uma das coisas que eu considero positivas no longa, que é o fiel retrato do ponto de vista de Priscilla.
Você será guiado por uma narrativa que mostra a evolução da Priscilla – de jovem adolescente à mulher por trás do “showman” – em todas as cenas. Cenas estas que, aliás, possuem uma fotografia e uma produção de cena, maquiagem e figurinos impecáveis (e realmente fazem a diferença na narrativa).
Essa evolução da pessoa é sutil, mas impressionante. A escolha da atriz Cailee Spaeny (Mare of Easttown, Maus Momentos no Hotel Royale) como protagonista foi acertada, porque ela consegue transparecer as emoções de menina inocente e com pouca bagagem de vida no início do filme, para o florescer de Priscila mulher durante a narrativa.
Ela faz com que Priscilla de fato seja a protagonista (e, se você tiver isso em mente, consegue acompanhar a história de uma outra forma, com os olhos dessa jovem – justamente a proposta feita pelo roteiro para começo de conversa).
Não à toa, Spaeny venceu o prêmio de Melhor Atriz em Veneza e concorre ao Globo de Ouro 2024 na categoria Melhor Atriz em Filme de Drama. Aqui também vale mencionar que a diretora Sofia Coppola (que também escreveu o roteiro) consegue acertar o tom em cheio ao retratar o olhar de uma menina de 14 anos que se apaixona inocentemente por alguém que “calhou” de ser um cara ridiculamente famoso, sem que isso soe piegas.
O que me leva a um outro argumento que, depois de assistir ao longa, você me diz se concorda ou não: eu particularmente acredito que a produção vai conversar muito mais com mulheres do que com homens. Justifico: a Priscilla que mencionei acima, a de 14 anos, conseguiu conversar com a Tissiane de 14 anos – a animação inocente de receber um telefonema de alguém que se gosta, por exemplo. O mesmo vale para quando ela foi crescendo.
Além disso, muitas das coisas pelas quais Priscilla passa é algo que (não precisaria mencionar, mas é válido sempre dizer) em uma sociedade machista e regida por homens foi por anos (e ainda é em muitos casos, infelizmente) tido como normal, mas são profundamente perturbadoras. Como o fato dela ter 14 anos quando conheceu Elvis, que tinha 24. Ou o fato de ela ser recorrentemente lembrada que era “muito madura pra idade”, ou comentários desse tipo que eu garanto que qualquer mulher já ouviu em algum momento da vida (seja a fala dita por homens ou por mulheres) e que, se você não prestar atenção esse “comentário” não vai passar de “uma brincadeira” ou de um “fala inofensiva”.
A solidão como parte do drama
A sinopse do filme fala sobre a adolescente Priscilla Beaulieu que “vive uma paixão arrebatadora” e ganha “um aliado na solidão”. Essa solidão que é praticamente uma personagem no drama – e não despropositadamente.
Por vezes, Priscilla é retratada em cenas em que ela claramente se sente só. Não apenas porque ela aparece literal e fisicamente sozinha em uma mansão enorme, mas é visível a sensação de solidão e de desamparo em seu rosto.
Essa solidão também ajuda a construir a base para uma Priscilla que se vê claramente presa em um confronto entre o que ela acredita ser o amor e o que ela é. Um não coexiste com outro e, portanto, é visível que a Priscilla Beaulieu vai, aos poucos, sendo apagada para dar lugar à Priscilla Presley.
Em resumo, você vai presenciar um relacionamento conturbado, sim. Um retrato de um relacionamento mental e fisicamente abusivo, sim.
Mas é de uma delicadeza (palavra utilizada com muita cautela aqui, porque a delicadeza está na cena, no retrato, e não no fato em si, considerando que o filme é baseado na realidade) que te faz mergulhar bem naquele limbo em que o abuso se mistura com o normal e você já não sabe se torce para o casal ficar junto, como em um romance hollywoodiano, ou se quer desesperadamente que a protagonista saia correndo dali o quanto antes.
Aquele limbo que deixa um gosto amargo, incômodo, desconfortável. Mas que é tão humano que você se identifica em algum grau, por mais insano que possa parecer.
Ao mesmo tempo, você também vai ver uma vida de bastidores sem o glamour que costumeiramente mora na imaginação das pessoas quando falamos sobre celebridades extremamente famosas (ou, às vezes, nem tão famosas assim).
É a vida… apenas sendo a vida.
Aqui também acredito que vale mencionar que o filme possui um ritmo cadenciado e lento que pode beirar ao enfadonho se você não se deixar envolver, apesar de eu julgar completamente justificável e fazer total sentido para a narrativa.
Vou tentar ser clara sem dar muito spoiler, mas o olhar do espectador aqui precisa estar atento para realmente perceber que certas cenas podem soar eventualmente repetidas, mas elas não estão sendo apresentadas novamente em sua totalidade. Elas estão ali para mostrar uma mudança em meio a uma permanência proposital, que fazem parte de todo o contexto de controle e passividade necessário para o relacionamento funcionar em sua disfuncionalidade.
Elvis como coadjuvante
Quero deixar aqui uma menção específica à escolha do ator Jacob Elordi (Euphoria, A Barraca do Beijo, Saltburn) como Elvis.
Elordi é um nome em voga que começou a ganhar pompa com um mero burburinho na produção mamão com açúcar A Barraca do Beijo, da Netflix, quando ele conseguiu seguir galanteando o coração de muita gente por aí em plena pandemia para, então, deslanchar – especialmente depois de atuações impressionantes como em Euphoria e em Saltburn.
Ele foi também uma escolha acertada, assim como Cailee e, embora o nome Elordi possa saltar aos olhos em um primeiro momento, a construção de Priscilla é tão boa que ele consegue permanecer em seu lugar como coadjuvante, sem roubar os holofotes para si.
Priscilla, de Sofia Coppola: o veredicto
O drama Priscilla é lindo, emocionante, provocativo, reflexivo. Como um bom drama deve ser.
É bonito de ver, com uma produção que enche os olhos.
É profundo, é marcante e consegue retratar uma história pesada sendo leve. Sem deixar de ser perturbador.
É um filme que eu facilmente recomendaria. Mas não para qualquer pessoa porque, como disse no início, acredito que ele conta uma história específica, que conversa com um determinado público e não com todos. Então, dependendo do amigo que me pedisse a recomendação, eu certamente analisaria o perfil para dar uma ressalva ou apenas dizer “só vai” (porque vale a pena).
A crítica de Priscilla para o blog KaBuM! foi possível graças ao convite da O2 Play e da MUBI para uma sessão especial à imprensa e convidados. Todas as cenas inseridas durante a crítica foram para ilustrar visualmente os argumentos e retiradas de trailers oficiais do filme.
Escrito e dirigido por Sofia Coppola, Priscilla é baseado na biografia Elvis e Eu, de 1985, assinada por Priscilla Presley e Sandra Harmon. O longa, produzido pela A24, conta com a codistribuição entre O2 Play (distribuidora da O2 Filmes) e MUBI, e teve estreia mundial durante o 80º Festival Internacional de Veneza (2023), seguido pela exibição no Reino Unido durante o BFI London Film Festival.
O filme é estrelado por Cailee Spaeny como Priscilla, Jacob Elordi como Elvis Presley, e Dagmara Dominczyk (Succession, Bottoms, A Filha Perdida) como Ann Beaulieu. Priscilla contou com exibições antecipadas em salas selecionadas desde o fim de dezembro, com estreia oficial hoje (4) em todos os cinemas brasileiros.
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