O filme de Gran Turismo, uma produção conjunta da Columbia, Sony Pictures e a recém-criada parte de filmes e séries do PlayStation Studios, é uma peça bem fora da curva do cinema: por um lado, há um trabalho imenso em contextualizar a história bastante real que seu enredo busca contar, sob uma ótica que tenta inserir “não gamers” em um contexto “gamer”.

Por outro, foge-se dessa mesma história várias e várias vezes com o intuito de priorizar…o PlayStation? O jogo? O estúdio Polyphony Digital, que criou a franquia de videogames na qual o filme é baseado? É difícil dizer, mas todo o longa-metragem rapidamente se perde em seus próprios enredos e entrega uma experiência que, apesar de visualmente – e sonoramente – interessante, não deixa de ser branda, insossa e…bem, “passável” é a palavra certa.

Gran Turismo e todo o papo de ‘acredite em seus sonhos’

O filme tira a sua base de uma história bem real: um case de sucesso da Sony, que vem na forma de Jann Mardenborough (Archie Madekwe), um adolescente ávido pelo jogo que serve de título ao longa. Um exímio corredor virtual, Jann consegue chamar a atenção do time de marketing da Nissan (aqui, um Orlando Bloom que convence no papel de “gerente de marketing filho da mãe”), que ajusta um campeonato virtual global para funcionar com “triagem” para um processo mais ambicioso – a também real “Gran Turismo Academy”.

Nisso, somos introduzidos a Jack Salter (David Harbour), o chefe de equipe de corridas que se vê desgostoso com o riquinho metido à besta de uma equipe de corrida que dirige Lamborghinis pintadas de um horrendo dourado – um óbvio tropo para “vilão-rival-privilegiado-nadando-na-grana-o-mundo-é-meu”. E, claro, o personagem de Harbour tem uma história de derrota no passado, que o tornou um velho ríspido e desacreditado que adora botar Janni e outros candidatos para baixo em pelo menos dois terços do filme.

Eventualmente, a narrativa vai se desenvolvendo a ponto do “gamer” “crescer” para “um corredor profissional” e chegar a grandes conquistas e…bom, você já consegue deduzir aqui os clichês. Asseguro que, de uma lista mental de dez, você acertará nove deles.

O pano de fundo é complementado pelos pais de Janni (o sempre forte Djimon Hounson e Geri Halliwell) que não apóiam o desejo do jovem gamer mas, por alguma razão, apostam todas as fichas em seu irmão mais novo que quer…ser jogador de futebol – dane-se o fato de que ambas as ocupações atléticas são praticamente impossíveis de serem obtidas, mas só o futebol é racional para a família, enquanto o videogame é “passatempo”.

Ok…

Conforme as coisas vão tomando forma para o jovem corredor, temos um torneio de um jogo que, apesar de mais de duas décadas de história, ainda é despercebido pela indústria automobilística – outro anacronismo, considerando que Gran Turismo (o jogo) é lotado de licenciamentos oficiais de carros e competições então, em alguma capacidade, os fabricantes automotores têm que se saber do que se trata.

Pior ainda: os “que não conhecem”, no filme, são retratados por executivos japoneses – a mesma nacionalidade das pessoas que fazem o jogo.

O…k…?

Com isso tudo estipulado, começam as “mentirinhas” – não apenas cinematográficas (essas, convenhamos, dá para ignorar em favor da edição: é realmente bonito de se ver), mas também as inconsistências históricas.

A primeira, e óbvia apenas para quem conhece Gran Turismo, vem na própria GT Academy: o filme faz parecer que Jann foi o campeão estreante, que o programa foi idealizado apenas para acomodar aqueles excelentes jogadores, e ele apenas aconteceu de ser o melhor entre eles.

Na realidade, Mardenborough foi campeão da terceira edição do programa – ele é o mais famoso, mas não o primeiro. E muito disso se deu pelo fato de que, ao contrário de outros, ele seguiu a carreira, se consagrando um corredor profissional (um desejo esse bastante citado no filme, ainda bem) e chegando em terceiro lugar, ainda pela GT Academy, uma corrida de 24 horas de duração patrocinada pela iniciativa em conjunto com a japonesa Nissan.

No filme, a “corrida de 24 horas” é a Le Mans. Sim, “aquela” Le Mans francesa que já é complicada durante, bem, uma partida de Gran Turismo no PlayStation, quiçá corrê-la na vida real. O cara saiu do PlayStation…para a Le Mans. “Licença poética”, às vezes, vira um exagero desmedido, mesmo.

Tudo isso é regado a menções bem numerosas a termos como “PlayStation”, “Polyphony”, (Kazunori) “Yamauchi-san” (o criador da franquia de jogos), o fato de que a marca é “um simulador altamente preciso de corrida esportiva” e que, por isso, quem é bom em Gran Turismo é, de alguma forma, bom em correr na vida real – um óbvio disparate, mas também um perigoso: quantas vezes já vimos essa mesma linha de raciocínio sendo usada em contextos perigosos, como por exemplo o massacre de Realengo, em 2011, e Call of Duty?

Imagem mostra cena do filme de Gran Turismo

Imagem: Sony Pictures/Divulgação

Posicionamento de marca é uma coisa, mas ‘Gran Turismo’ é pornografia publicitária

O maior incômodo com quem vem dos jogos para assistir ao filme é justamente o fato de que, no afã de promover o game, há uma sensação perene de “saco cheio” de tanto se ouvir nele. As menções são bem colocadas – você tem os ávidos defensores, você tem os homens de mente aberta dispostos a experimentar, você tem os negacionistas tradicionais que se recusam a enxergar “gamer” e “corredores” sob o mesmo Sol – e destes, há ainda o nicho dos “convertidos”, que fazem a mea culpa cinematográfica de “eu estava errado” em algum momento de epifania filmada.

Até aí, tudo bem: inserir marcas dentro desse contexto, em doses homeopáticas, faz parte do jogo e pode até funcionar bem. Quer um exemplo – do próprio filme – onde isso funciona? A Nissan. A montadora japonesa foi a financiadora da GT Academy e, para alguns, a mera existência do programa pode ser atribuída aos seus muitos e muitos dólares investidos. O nome dela, no entanto, limita-se a adesivos nos carros, os nomes de alguns veículos dirigidos e diálogos que envolvam alguma diretriz corporativa com o personagem de Orlando Bloom.

Agora…PlayStation? Arrisco dizer, nem os gamers querem ouvir tanto as menções ao console da Sony, que aparece em praticamente todos os aspectos – desde tomadas generosas ao DualSense (outro anacronismo: o PlayStation 5 sequer existia quando Jann começou sua carreira, segundo os registros históricos, em 2011) até sequências de interação na fachada dos estúdios Polyphony. Isso não acontece em nenhum momento do filme, mas não ficaria surpreso se alguém enfiasse o Ken Kutaragi (“pai” do PlayStation) ou Kaz Hirai, ex-CEO da Sony, em algum diálogo.

Tudo isso se culmina em uma entrega, repetindo um termo do começo do texto, passável: o que é real na história de Jann Mardenborough toma uma posição secundária em um filme que deveria ser sobre a história de Jann Mardenborough. Em seu lugar, entra uma série de afirmações de como Gran Turismo é maravilhoso, super realista, praticamente uma ferramenta de treino para pilotos de verdade, como se fosse os motores virtuais do jogo fossem o “Santo Graal” da transição entre as corridas virtuais e as reais.

Particularmente intragável: quando o Jann do filme “adivinha” que os freios de seu carro superaqueceram (brake glazing é o termo, aliás) e, questionado pelo técnico automotivo de 25 anos de carreira que não percebeu esse detalhe, a resposta do moleque foi uma forma pomposa de dizer “eu jogo Gran Turismo pacas”.

Imagem mostra cena do filme de Gran Turismo

Imagem: Sony Pictures/Divulgação

Gran Turismo agrada? Olha, depende…

Parece que estou pegando pesado com um filme que, de uma certa forma, tem seu charme. Mas quero ressaltar aqui: Gran Turismo não é necessariamente ruim. Para quem o assiste sem passar pela franquia de jogos, a experiência é facilmente proveitosa – não é a próxima obra-prima da sétima arte, mas no que tange a filmes que derivam de jogos, eu particularmente o achei melhor que Uncharted em alguns momentos. Talvez o fato de ele ser “baseado em uma história sobre o jogo” e não “filme do jogo” em si tenha dado a mim essa salvaguarda na crítica.

E eu não vou me cansar de ressaltar: show de fotografia e edição…ou pelo menos nas partes sem CGI. Essas mais computadorizadas são só toscas e fazem muito pouco em prol da óbvia intenção de criar um easter egg que relacione filme e jogo.

Entretanto, mesmo quem conhece Gran Turismo terá que dar o braço a torcer: havia muito mais para ser aproveitado. A história de Jann não é necessariamente um “conto sobre o atleta que foi do lixo ao luxo”, mas não deixa de ser um caso agradável de se conhecer – especialmente considerando o tanto de mentiras negativas que os videogames já tiveram que aturar.

Ao invés disso, a decisão escolhida foi “vamos tentar disfarçar essa propaganda de mais de duas horas em um filme, ao mesmo tempo em que fazemos a peça de marketing mais óbvia e menos sutil possível” no processo.

Por via das dúvidas, eu vou deixar o PlayStation desligado essa semana…sabe como é…desintoxicar um pouco…

Galeria de imagens

[Crítica] ‘Gran Turismo’ não é um filme, mas uma propaganda de duas horas para o PlayStation
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