Por muito tempo, as discussões que rondavam as mesas de bar do Brasil limitavam-se a dúvidas cruéis como “servir o feijão por cima ou por baixo do arroz?”, “comer a coxinha pela ponta ou pela ‘bundinha’?” ou “usar ou não ketchup na pizza?”. Mas recentemente, outro tema passou a dominar os debates brasileiros: Esports são ou não esportes?

Justiça seja feita, a discussão não é relativamente nova — até porque o cenário competitivo de jogos eletrônicos já existe há alguns bons anos e seu enquadramento como esporte vem sendo discutido desde então. Mas o assunto ressurgiu à tona após uma polêmica fala da ministra do Esporte, Ana Moser.

Em entrevista ao UOL em janeiro deste ano, Moser foi enfática ao dizer que, em sua concepção, considera os Esports apenas como parte da indústria de entretenimento, e não como um esporte.

“A meu ver o esporte eletrônico é uma indústria de entretenimento, não é esporte. Então você se diverte jogando videogame, você se divertiu. O atleta de Esports treina, mas a Ivete Sangalo também treina para dar show e ela não é atleta, ela é uma artista que trabalha com entretenimento. O jogo eletrônico não é imprevisível, ele é desenhado por uma programação digital, cibernética. É uma programação, ela é fechada, diferente do esporte”, disse a ministra na ocasião.

Ana Moser, ministra do Esporte que discutiu sobre a finalidade dos Esports

Ana Moser, ministra do Esporte no Brasil – Imagem: Waldemir Barreto/Agência Senado

Naturalmente, a controvérsia levantada causou muito burburinho (e divisão) entre os brasileiros.

De um lado, há quem defenda que as competições de jogos eletrônicos, de fato, não devam ser enquadradas como esporte. Alguns destacam a ausência de exercícios físicos durante a prática. Outros apontam a diferença entre os campos virtuais e reais. Há quem também destaque a impossibilidade de tornar esporte uma propriedade intelectual de alguma dev — que pode desativar o jogo ou servidores a qualquer momento.

Por outro lado, existem pessoas que enxergam diversos benefícios do esporte no Esports. E isso vai muito além das competições estratégicas e de todo o preparo diário dedicado aos pro players (alimentação, academia e acompanhamento psicológico, por exemplo), já que a prática também envolve causas como impacto social, crescimento pessoal e relações interpessoais — fatores vistos nos desportos tradicionais.

Mas fato é que trata-se de algo muito particular. Afinal, não há uma exigência clara de que “algo” necessita de atividades físicas para ser ou não considerado um esporte. Consequentemente, é natural deparar-se com confrontos de opiniões sobre o tema.

Logo, limitar-se a um debate se determinada prática deve ou não ser considerada um esporte pode ser algo como “chover no molhado”. E muito mais importante que isso seria analisar a necessidade desse rótulo, bem como a viabilidade e consequências desse enquadramento aqui no Brasil.

E, bem, foi basicamente isso que o blog KaBuM! tentou descobrir ao discutir o tema com membros jurídicos e players ativos do cenário de esportes eletrônicos brasileiro. Os principais pontos dessa discussão você pode conferir abaixo.

Viabilidade de enquadramento não é tão simples quanto parece

O primeiro grande ponto a ser debatido é se seria viável tornar os Esports como um desporto aqui no Brasil. Afinal, diferentemente de práticas como futebol, vôlei ou basquete, os esportes eletrônicos possuem, sim, um(a) dono(a) — no caso, as próprias desenvolvedoras ou publicadoras dos games.

Para melhor ilustrar a situação, vale analisarmos o caso do futebol. Não há um único dono e o esporte é gerido por federações e confederações espalhadas pelo mundo. Na primeira prateleira está a Fifa, a entidade máxima o futebol. Mais abaixo dessa “estante”, existem as confederações regionais (como a Conmebol aqui na América do Sul), seguida pelas confederações nacionais e, por fim, as federações locais.

Na teoria, essa divisão permite que todas as federações e confederações criem ligas e torneios diferentes, o que estimula e fomenta a prática no mundo todo. Apesar dos pesares, seria difícil imaginar uma Copa do Mundo sem o dedo da Fifa ou um Campeonato Brasileiro alheio à gestão da CBF.

O problema é que com os Esports a situação é bem diferente. É preciso lembrar que cada jogo é uma propriedade intelectual da respectiva desenvolvedora/publicadora e todos os eventos e campeonatos (nacionais ou internacionais) são de responsabilidade delas.

E é aí que entra a grande complicação: para estar mais perto de ser enquadrado como esporte, os Esports talvez precisassem ser distribuídos por federações e confederações, saindo do domínio das devs. Mas isso é algo que dificilmente ocorreria, como destaca Marcelo Mattoso Ferreira, sócio do escritório Barcellos e Tucunduva Advogados e atuante no mercado de Games e Esports.

“Dificilmente seria viável. Os jogos hoje possuem todo um universo e uma comunidade em torno deles (licenciamento, influência, valores intrínsecos, construção de comunidades, etc.). Esse é o maior ativo das devs/publishers e o jogo é apenas um desses catalisadores. Ou seja, é pouco provável que alguma pub/dev abra mão disso e a entregue para alguma entidade. É exatamente por isso que não dá para encaixar o “modelo” do esporte nos Esports. Há particularidades que os separam”, pontuou o advogado.

Marcelo Mattoso Ferreira, sócio do escritório Barcellos e Tucunduva Advogados e atuante no mercado de Games e Esports

Marcelo Mattoso Ferreira, sócio do escritório Barcellos e Tucunduva Advogados e atuante no mercado de Games e Esports – Imagem: acervo pessoal

O entendimento destacado por Ferreira vai de encontro ao que pensa parte dos players do cenário. Para Rafael Queiroz, General Manager da Team Liquid no Brasil, a discussão sobre os Esports é necessária, mas distribuir os domínios de jogos eletrônicos entre federações e confederações não é a melhor saída.

“O ecossistema dos Esports é uma triangulação entre a publicadora, organizações e os fãs, e manter este ecossistema é algo complexo, custoso e peculiar, pois não há uma regra única para fazer com que o cenário competitivo de um determinado jogo seja um sucesso. Este fato depende de vários fatores que precisam ser controlados por quem, de fato, detém seus direitos”, ressalta Queiroz.

Rafael Queiroz, General Manager da Team Liquid no Brasil

Rafael Queiroz, General Manager da Team Liquid no Brasil – Imagem: acervo pessoal

Por mais que desenvolvedoras se recusem a comentar sobre o tema, é realmente difícil imaginar que elas abririam mão de suas respectivas propriedades intelectuais e repassariam os jogos para domínio de federações. Não que isso seja impossível, mas no fim, elas que teriam de ditar como seriam realizados os eventos e torneios.

“O que pode haver é uma cessão de utilização do jogo para determinadas competições e, mesmo assim, sob o crivo de qualidade da própria dev/pub”, completou Ferreira.

Esports como esportes pode ser benéfico, mas…

Mas mais importante que um mero rótulo seria analisar se o enquadramento dos Esports como esporte seria algo benéfico para o cenário (o que inclui, times, staffs e atletas). E como quase todos os pontos dessa discussão sobre esportes eletrônicos, esse recorte também possuem diferentes entendimentos.

“A insegurança jurídica e política no Brasil é nítida e a falta de diálogo e entendimento sobre nosso mercado é evidente nas casas legislativas do país. Não há como não haver divergência sobre o tema”, afirmou o general manager da Team Liquid no Brasil.

Por um lado, há pessoas como Queiroz que destacam consequências positivas, como “mais acesso a investimentos para fomentar alguns cenários de base (que já são escassos para esportes tradicionais no Brasil), quebra da barreira da informação para o público não-endêmico, realização mais eventos e suporte a jovens em situação de vulnerabilidade a iniciarem em uma carreira profissional”.

É algo que faz sentido. Afinal, reconhecer os Esports como esportes traria ainda mais visibilidade para um mercado que deve movimentar cerca de US$ 200 bilhões em 2023, segundo a consultoria Newzoo. E mais visibilidade significaria mais investimentos.

Ilustração de evento Esports

Imagem: Roman Kosolapov/Shutterstock

Por consequência, essas aplicações poderiam ser redirecionadas para a criação de mais ligas (nacionais ou internacionais), algo que seria bom tanto para os atletas quanto para a comunidade. Isso sem contar no impacto social por trás disso tudo, já que escolas poderiam ser criadas para democratizar os esportes eletrônicos e para apresentar a carreira para quem não tem o mesmo acesso como o de indivíduos com poder aquisitivo mais alto.

De quebra, esse enquadramento poderia trazer mais respaldo jurídico para atletas e staff dos times. E isso resultaria em contratos alinhados ao que já é visto em esportes tradicionais, o que poderia evitar cláusulas abusivas em contratos não necessariamente benéficos aos atletas.

“Ora, então não há grandes motivos para não discutirmos os Esports como esportes, certo?”, podem estar pensando alguns. A resposta é mais complicada que parece. Isso porque membros do cenário competitivo também enxergam com receio esse interesse por parte do poder público.

Para alguns, não faria sentido colocar os jogos eletrônicos em discussão por entidades que não têm familiaridade com o tema. Até porque não faria sentido uma federação que não entende as particularidades de cada game ter domínio sobre as propriedades intelectuais. Assim como não faria sentido juntar jogos totalmente distintos (como CS:GO, League of Legends, Starcraft, Fifa, entre outros) em um mesmo bolo.

Além disso, há um receio de que uma intervenção estatal demasiada poderia estrangular o cenário competitivo. Isso porque um domínio mais amplo de jogos diferentes poderia limitar o potencial dos games e decontentar desenvolvedoras, atletas e até mesmo a comunidade de entusiastas.

No fim, parece haver uma compreensão de que há benefícios envolvidos, bem como pontos que precisam de um entendimento entre as organizações. Mas isso só será solucionado com diálogo, e não via opiniões particulares que acabam fechando portas para discussões.

Menos rótulos, mais discussões

Aliás, diálogo parece ser o ponto-chave para essa discussão — que não deve acabar tão cedo. Tanto Ferreira quanto Queiroz concordam que o debate sobre um mero rótulo de esporte para o Esports não se faz tão importante, uma vez que os esportes eletrônicos vão muito além de um enquadramento.

O mais importante é discutir melhorias que podem ser implementadas (via PLs, regulamentações ou outros meios) para o cenário competitivo de jogos eletrônicos como um todo. E parece bem claro que isso terá de ser feito em conjunto, com a participação ativa de times, organizações, players do cenário e membros do governo, para que interesses particulares não se sobreponham à relevância mais ampla do tema.

Não menos importante, vale destacar que o Projeto de Lei 205/23, que define os Esports como modalidade esportiva para todos os efeitos legais, já está sendo analisado pela Câmara dos Deputados. O PL será distribuído às comissões temáticas e novas discussões devem surgir à tona em um futuro breve.

Fato é que o debate não será encerrado após o desfecho da proposta — independentemente de qual seja a decisão. Por isso, toda discussão é (e será) importante para que um mercado do calibre dos videogames não seja descartado sem as devidas considerações.

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