Começando de uma forma direta e (não tão) breve, com a explicação sobre o filme. Assassinos da Lua das Flores mostra um enredo comum à história de diversos países: como o petróleo, considerado o ouro dos tempos recentes, trouxe uma riqueza imensurável à nação indígena Osage.

E também conta sobre como essa riqueza se tornou rapidamente uma maldição.

Um adendo aqui para fins de contexto, antes de continuarmos: os Osage são um dos cerca de 500 povos indígenas nativos que habitavam o solo estadunidense antes da colonização — sim, este é um jeito longo de dizer que a terra era deles.

A nação Osage existe ainda hoje, mas, como você pode imaginar, a história não foi tão generosa com eles (tampouco foram os colonizadores brancos que adentraram o solo de Oklahoma em busca do tal petróleo).

Em meio à riqueza recém-conquistada, os Osage também tiveram de lidar com assassinatos “misteriosos” que desmantelaram sua nação.

Da esquerda para à direita, a imagem mostra as atrizes: JaNae Collins, Lily Gladstone, Cara Jade Myers e Jillian Dion em cena do filme Assassinos da Lua das Flores

Da esquerda para à direita: JaNae Collins, Lily Gladstone, Cara Jade Myers e Jillian Dion que interpretam, respectivamente, a prima Reta e as irmãs Mollie, Anna e Minnie – Imagem: divulgação/Apple

Assim, somos apresentados a William Hale (Robert De Niro) e sua gangue, da qual Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) faz parte, que chegam às terras Osage com o objetivo de se infiltrar no local durante a virada do século XIX.

Uso aqui o termo “gangue”, porque de fato é o adequado — o Houaiss engloba as definições “associação de malfeitores”, “bando” e “quadrilha” para o verbete. Mas você pode incluir “assassinos” à definição também.

Apesar da narrativa girar em grande parte em torno da família Kyle, dos Osage, e de cenas que querem retratar o que a sinopse do filme descreve como “o amor verdadeiro [que] se cruza com uma traição indescritível”, não se deixe enganar: não há qualquer amor verdadeiro nessa história. Há apenas a ilusão de um romance entre Burkhart e Mollie Kyle (Lily Gladstone).

Crítica | Assassinos da Lua das Flores é uma verdade indigesta (que você precisa ver)

O casal central da trama de Assassinos da Lua das Flores: Ernert e Mollie Burkhart – Imagem: divulgação/Apple

Aliás, vou me retratar aqui: existe, sim, um amor verdadeiro. Mas ele definitivamente não é o que Burkhart quer que você acredite que é.

Manipulação, trapaça, extorsão, traição, roubo e morte é tudo o que os Assassinos da Lua das Flores podem efetivamente entregar à nação Osage em prol de uma ganância sem limites, vestida em um bom terno — como manda o figurino do engenhoso desonesto que quer se passar por “bom moço” para conquistar a confiança de todos.

O que Assassinos da Lua das Flores traz de especial?

Se tem algo que compartilhamos com a história dos Estados Unidos, esse algo é a invasão à terra indígena movida à ganância inescrupulosa do colonizador branco. Justamente o que essencialmente encontramos no longa, classificado como “de faroeste”.

Não espere, no entanto, por um filme de faroeste daqueles clássicos do cinema dos EUA, com enredos de pistoleiros que fizeram despontar tantos talentos famosos como, John Wayne, Clint Eastwood e Charles Bronson. 

Filmes estes, aliás, que particularmente não fazem parte dos meus títulos de favoritos, mas que guardo na memória afetiva por serem o gênero mais assistido pela minha avó, ídola da minha vida. E, para não deixar a impressão de que ela só via “coisa antiga” — apesar de ser da trupe de fãs do Marlon Brando —, quero deixar registrado aqui que dona Lola era muito fã de todos os 007, incluindo os com Pierce Brosnan e Daniel Craig, além de também ter vibrado com a vingança conquistada por Frank Castle em O Justiceiro (sim, o da Marvel).

Mas, de volta à crítica de Assassinos da Lua das Flores: este foi um faroeste que me conquistou.

O que você pode esperar do longa é, sim, uma história bem construída, com aquele requinte que uma produção cinematográfica desse calibre pode entregar.

Para mim, tudo neste filme orna de forma magistral.

Crítica | Assassinos da Lua das Flores é uma verdade indigesta (que você precisa ver)
Crítica | Assassinos da Lua das Flores é uma verdade indigesta (que você precisa ver)
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Crítica | Assassinos da Lua das Flores é uma verdade indigesta (que você precisa ver)
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Crítica | Assassinos da Lua das Flores é uma verdade indigesta (que você precisa ver)

Não quero dar spoilers aqui, mas, em meio ao enredo principal, temos a inserção de elementos “teatrais” — vou usar esse termo por falta de uma descrição melhor que possa explicar sem revelar tanto sobre essas cenas que fazem total sentido e são complemento à narração. Uma certa licença poética, daquelas bem utilizadas e que deixam claro que a produção é, antes de tudo, uma obra de arte.

O brilhantismo da direção de Martin Scorsese se manifesta não apenas nos detalhes das cenas, mas na construção do roteiro que ele ajudou a escrever ao lado do roteirista Eric Roth — cujo currículo, vale mencionar, inclui títulos marcantes do cinema como “Forrest Gump – O Contador de Histórias” e “O Curioso Caso de Benjamin Button”.

Os diálogos são repletos de falas (não tão) sutis e provocativas, com preconceitos tão antigos quanto contemporâneos. Como no diálogo entre os personagens de DiCaprio e Gladstone mostrado no início do trailer (logo abaixo), em que ele afirma que ela “tem uma cor de pele linda” e a questiona, em seguida, “qual cor você diria que é?”, ao passo que Gladstone rebate com “a minha cor”.

Fora as interações embaladas pelo idioma Osage — outro ponto que sempre considero extremamente positivo em todos os longas que fogem do universo exclusivamente inglês (afinal, quem é que falaria qualquer coisa com a própria mãe em um idioma que não a sua língua materna, não é mesmo?)

A atuação dramática dos igualmente brilhantes Robert De Niro, Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Brendan Fraser e Jesse Plemons — para citar alguns grandes nomes que compõem o elenco —, é um ponto à parte, que vale a pena ser desfrutado.

Aliás, vou aproveitar o momento para uma retrospectiva que vale ser mencionada: a dobradinha DiCaprio e De Niro é algo que há um bom tempo faz parte do pacote Scorsese e é uma receita que costuma dar muito certo.

Em longas distintos, o diretor escalou DiCaprio para produções como Ilha do Medo, Os Infiltrados (que trouxe o reconhecimento de Melhor Diretor para Scorsese tanto no Oscar quanto no Globo de Ouro, ambos os prêmios em 2007) Gangues de Nova Iorque, O Lobo de Wall Street (em que DiCaprio foi escolhido como Melhor Ator – Comédia ou Musical no Globo de Ouro em 2014), além do premiado O Aviador, que conquistou cinco estatuetas do Oscar, bem como rendeu um Globo de Ouro (2005) de Melhor Filme Dramático e de Melhor Ator de Drama para DiCaprio.

Já De Niro é uma parceria de longa data que inclui títulos dos primórdios do cinema de Scorsese, como Caminhos Perigosos (1973), New York, New York (1977);  Touro Enraivecido (1980), O Rei da Comédia (1983),  Os Bons Companheiros (longa de 1990, que trouxe o BAFTA de Melhor Direção para Scorsese, além de uma indicação ao mesmo prêmio para De Niro como Melhor Ator), Cabo do Medo (1991), Casino (filme de 1995, que agraciou o diretor com o Globo de Ouro de Melhor Direção), além de o recente O Irlandês (2019). Isso sem mencionar o icônico Taxi Driver filme considerado patrimônio cultural dos EUA e vencedor do principal prêmio de Cannes, o Palma de Ouro, em 1976.

Posso dizer então que está bem longe de ser uma coincidência DiCaprio e De Niro estarem juntos neste longa.

Agora, com o perdão da figura de linguagem que usarei a seguir, deixo a minha tradicional “menção honrosa” à Lily Gladstone. A atriz desabrochou, tal qual seu nome, de forma delicada e marcante ao longo dos quase 210 minutos da película. É um prazer ver as diversas facetas dela se desmembrarem em um arco de personagem que mistura inocência, lealdade, força, dureza.

É cru. Mas não um “cru” que denota algo que ainda precisa ser muito trabalhado, pelo contrário: é um “cru” bruto, visceral.

Crítica | Assassinos da Lua das Flores é uma verdade indigesta (que você precisa ver)

Mollie (Lily Gladstone) e Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) separados por William Hale (Robert De Niro) – Imagem: divulgação/Apple

Vale a pena ver Assassinos da Lua das Flores?

Filmes baseados em fatos reais, em geral, são indigestos. Mas Assassinos da Lua das Flores traz uma daquelas verdades que precisam ser contadas — especialmente porque é também uma daquelas verdades que insistem, ainda hoje, em darem aquele jeitinho de passarem camufladas pela história. Seja porque as pessoas escolhem fechar os olhos para esse tipo de fato, seja porque os contadores das histórias são também os vilões que não querem ser retratados como tal.

Em tempos sombrios, em que cenários de guerra ainda são tão presentes como os que vemos no mundo, ano sim e ano também, precisamos cada vez mais abrir os olhos e, principalmente, os ouvidos para não estarmos fadados a repetir a história, parafraseando aqui o filósofo irlandês Edmund Burke.

Ter filmes como Assassinos da Lua das Flores é, portanto, uma necessidade. Uma verdade indigesta que precisa ser consumida.

Assassinos da Lua das Flores é uma produção Apple Original Films que chegou às telonas brasileiras hoje, 19 de outubro. Produzida pelo Apple Studios, com distribuição pela Paramount Pictures, o longa tem estreia mundial nos cinemas nesta sexta-feira (20) e, em breve, também estará disponível no streaming Apple TV+.

PARA SABER MAIS SOBRE A HISTÓRIA

  • Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese, foi baseado no livro homônimo (ou “Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI”, no original em inglês), do jornalista estadunidense David Grann. Para o livro, o autor passou quase cinco anos investigando e pesquisando detalhes sobre os assassinatos ocorridos na tribo Osage, bem como toda a conspiração por trás do caso.
  • No Brasil, a obra ganhou uma versão pela editora Companhia das Letras, intitulada “Assassinos da Lua das Flores. Petróleo, morte e a origem do FBI“.
  • Neste link aqui, você pode ler, na íntegra, um trecho (em inglês) extraído do primeiro capítulo do livro e reproduzido pela revista The New Yorker, publicação na qual Grann é colaborador desde 2003.

O blog KaBuM! pôde assistir ao filme em uma sessão antecipada, especial para a imprensa, a convite da Paramount Pictures e da Apple Studios.

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